sábado, janeiro 20, 2007

A Roda Gigante.

Eu me lembro bem do triste rostinho daquela menina de vestido florido. Ela era linda, de seus seis anos tão frágeis como seus olhos azuis iluminados. Devia estar ali há tempos, somente olhando, com uma calma de anjo que chegava a doer a alma. Os pés iam empurando a areia de vez em quando, como quem diz que adoraria sentir o ar do alto, apenas para ver o cabelo balançar.
As outras crianças saíam enjoadas, com medo. Os pais reclamando que odeiam isso tudo, que estão perdendo a novela das oito ou o jornal. Mas a menininha continuava ali, ignorando os rostos de desgosto das crianças que saíam do brinquedo, ignorando os comentários bruscos dos adultos. Parecia que nada poderia desanimá-la.
Sentei-me em um banco, somente para observar a menina. Ela estaria sozinha? Mas era tão pequenina... não poderia estar sem os pais.
Resolvi falar com a doce criança, imagine se estivesse perdida, estava com um rosto tão decepcionado, tão triste...

- Ei, menina, você está bem? - perguntei quase sussurando, para não assustá-la.

Ela não respondeu. Pareceu não ter escutado, estava com toda atenção naquele imenso objeto.

- Menina... está tudo bem? - perguntei novamente, um pouco mais alto.

Ela olhou para mim e moveu os lábios como se fosse responder, mas pareceu que mudou de idéia e virou o rosto subitamente.

- Você está perdida?

- Mamãe diz que não devo falar com estranhos... - disse, e era a voz mais angelical que já ouvira em toda minha vida.

Pensei por um minuto no que falar, ela estava certa. Eu era um completo estranho.

- E onde está sua mãe?

- Ela... ela não sabe que estou aqui, ela não gosta de parques e diz que não tem dinheiro para eu andar nos brinquedos...

A menina pareceu suspirar, continuava a olhar fixamente para sua frente, não me encarava, como se quisesse esconder a tristeza.

- Há quanto tempo está aqui? - bateu-me um aperto no peito, que mãe não teria dinheiro para levar a filha a um parque?

- Desde tardinha...

- E por que só olha para esse brinquedo? Não gosta dos outros?

- É que... eu ouvi um menino dizendo que você pode tocar a lua, lá do alto... mas eu não tenho como tocar... não tenho dinheiro...

Parei por um segundo. Que sonho. Tocar a Lua... que criança mais bela. Que verdade mais linda.
Vi uma lágrima escorrendo de seus olhos. E não é sempre isso que acontece? Quando não conseguimos transformar nossos sonhos em realidade? Nós choramos.

- E se eu for na roda gigante com você? Eu pago sua entrada. - fazer acontecer, pensei.

- Eu... mesmo? Comigo? Lá no alto? - seus olhos encheram-se de sorrisos.

- Sim. - sorri para ela.

Peguei em suas mãos, a filha que nunca tive, e paguei as duas entradas. Sentamos no banco da roda gigante e lá fomos nós. O céu estava abarrotado de estrelas, naquela noite. E a Lua estava bem na nossa frente. Parecia chamar-nos para dançarmos uma cantiga de roda, para lembrarmos do tempo em que não existíamos. Peguei em sua mão e a coloquei no espaço em que a lua se encontrava.

- Viu? Agora você tocou a lua.

Ela abriu um enorme sorriso, daqueles sinceros e únicos.
Ficou maravilhada com o vento batendo em sua pele. Parecia que aquele era o momento mais feliz de toda sua pequena vida. A cada volta, ela suspirava mais, como se estivesse comendo um doce e não quisesse que ele acabasse. Mas o passeio estava acabando e nós já teríamos que descer.

- Bem, parece que acabou. - disse, meio chateado.

Ela soltou um pequeno riso e desceu do brinquedo correndo. Eu não tive tempo nem para levantar-me, e ela já estava na porta do parque, dando adeus para mim...
Não recebi obrigada. Não recebi agradecimento. Fique triste por saber que nunca mais veria aquele sorriso novamente. Mas alegrei-me ao saber que transformara o sonho de uma menina em realidade.
Percebi, então, que ela não agradeceu com palavras, mas agradeceu com a maior felicidade que já tivera. E isso, meus caros, nem mesmo uma palavra de afeto poderia substituir.

quinta-feira, janeiro 18, 2007

Gota.

Vim dizer-lhe,
Gota de água,
O que meu coração suprime.

Você pode senti-lo bater?
Tum. Tum. Tum.
Ele quebra a sintonia de sua morte.

Cai, gota, ao chão.
Deixa de viver,
Como terra,
Como água,
Como pó.

Cai, gota, nos meus fios de cabelo
E penteia minha alma.
Você consegue descê-los, sem neles tocar?

Vai, vai embora com o vento.
Para longe.
Misture-se com a chuva.

E leve consigo uma lágrima, gota.

- Uma lágrima-gota.

terça-feira, janeiro 16, 2007

Ainda Assim.

Se eu fosse vestígio
Do que já se passou,
Ainda assim,
você me recordaria?

Se eu fosse um símbolo,
Fechado, cravado: uma incógnita,
Ainda assim,
Você me decifraria?

Se eu fosse a água poluída
De rios mentirosos,
Ainda assim,
Você me nadaria?

Se eu fosse a vida
Com desgraça e sem sorrisos,
Ainda assim,
Você me viveria?

- Pergunto-lhe, ao final:

Se eu fosse o que sou,
Escondida por máscaras,
Atrás de sentimentos não-sentimentais

Se eu fosse um espinho em vez de rosa,
Se eu fosse má poesia em vez de prosa,

Se eu fosse inferno em vez de céu
Se eu fosse amarga em vez de mel,


Ainda assim,

Você me amaria?


[ Se, ainda assim, você me amar, eu lhe pago uma bebida. ]

quarta-feira, janeiro 03, 2007

Balançar.

Uma flor em minha consciência desabrochou, quando escutei sua calma voz. Quase um sussurro, vida calma de recém descobertas. Uma criança, para mim. Para outros, apenas um objeto a pisar-se. Quem sabe uma meia suja, sem importância, que jogamos na lata de licho. Era disso que essa criança vivia. De opiniões ante-conceituadas.
Naquela tardezinha, em frente ao banco do parque, ela se balançava. Sua pele negrinha encostava no vento, enquanto suas madechas o acompanhavam. Sorria, sozinha, sempre sozinha, porque era negra. E negros, em 1758, só tinham a si mesmos e ao preconceito de todos, inclusive o deles próprios.
Eu me sentei naquele gramado verde e fique a observá-la. Ela balançava despreocupada, parecia que não tinha nenhum adulto por perto. Não era normal uma crinaça negra por essa parte da cidade, era perigoso para ela. Se alguém maldoso e racista o suficiente a visse, com certeza ela tomaria uma boa sova. Mas parecia que nada poderia mudar sua tranqüilidade.
Adormeci, por um tempo, encostada numa árvore, e fui acordada com um cantarolar gostoso, tão leve, que parecia um sonho.

Mãezinha do céu, eu não sei rezar.
Só sei dizer quero te amar...

Abri os olhos e espreguicei-me. Aquela voz macia vinha da menina negrinha, naquele balançar contínuo. Parecia que nunca cansava de balançar, era quase como se estivesse voando, para lá e para cá. Piscava os olhos quase raramente e, até aquele momento, parecia que não havia me notado. Virou o olhar, para mim, então, subitamente e não se mostrou surpresa ao ver-me ali. Eu, pelo contrário, achei a situação anormal, já que eu era uma mulher branca e desconhecida para a menininha.
Ela continuou com sua calma, em meio àquele ar deserto de vida. Algumas poucas pessoas que passavam olhavam feio para a doce garotinha no balanço e, depois, olhavam mais feio ainda para mim, por estar tão perto de uma negra sem ter nojo ou sem fazer nada para tirá-la de uma pracinha de crianças brancas.
Voltei a pensar comigo. Uma criança sozinha já era estranho de encontrar. O que uma menina negra estaria fazendo sozinha por aqui? Não sentia medo? Não era já tão nova assim, sabia, provavelmente, dos perigos que todos poderiam representar a ela.

Azul é seu manto,
Branco é seu véu...

Voz suave. Voz única. Que menina seria esta? Meu olhar não conseguia sair de perto desta criança! Tão segura de si, tão calma, tão corajosa. Será que estaria sozinha no mundo? Não, mesmo que estivesse, não me permitiriam adotá-la. Meu marido odiaria a situação! Mas... e se ela estiver sozinha?
Não, ela está arrumadinha, parece que veio da igreja, afinal, hoje é domingo. Sim, os pais devem tê-la deixado na escolinha e ela fugiu para cá! Eles devem estar preocupadíssimos.
Pensei em levantar-me, naquela mesma hora, para poder comunicar-me com a criança. Mas paralizei-me, quando ela voltou a cantar. Sua voz era quase... mágica.

Mãezinha, eu quero te ver lá no céu.
Mãezinha, eu quero te ver lá no céu...

Então ela finalizou a voz e a música. Parou também de balançar-se. Eu levantei e fui em sua direção, ela levantou o doce rostinho para mim e alargou um grande sorriso. Meus passos foram devagando, pensativos, até chegarem em frente à pequena figura de branco. Respirei e pousei a mão sobre seu cabelo, fiz um carinho.

- Menina, está sozinha? - perguntei, o mais gentil possível.

- Não, nunca estou sozinha!

- Como não!? Onde estão seus pais?

- Eu não tenho pais, não aqui!

- E onde os tem?

Ela deu uma risada gostosa, bem infatil, e levantou as sombrancelhas. Dobrou um pouco o rosto e pegou em uma das minhas mãos. Ergueu-a e fez com que um de meus dedos apontassem para o céu. Eu me surpreendi com aquele gesto, mas minha fé sempre foi muito escassa. Porém, não queria acabar com toda a esperança de uma criança nesse mundo.

- Ah, sim... você quer dizer que Deus é seu pai?

- Uhum.

- Mas para aonde foram seus pais daqui, sabe? A mamãe e o papai?

- Não há mamãe e papai, ora!

Então, ela correu. Correu realmente como quem tem força de vontade. E eu corri atrás, não podia deixá-la sozinha! Ela atravessou a rua sem nem mesmo olhar para o lado e se encaminhou para dentro de um prédio. Entrei logo após, e tudo estava vazio. Vi seus cabelos balançarem pela escadaria e, cansada, segui-a, degrau por degrau.
Subi muitas escadas, o suor já estava batendo no meu rosto. Chegamos até o final de tudo, só havia, agora, o que descer. Abri uma porta que dava para o andar mais alto e a vi, o vento sempre em sua direção. Meu coração acelerou! Ela estava em cima da borda, mais um passo e despencaria no ar.

- Menina! O que está fazendo?!!! Vamos, desça já daí!

Ela virou seu rosto sorridente para mim e deu uma longa piscada. Jogou-me um rosário azul, ao qual eu agarrei com toda minha vida.

E logo depois... caiu.
Ao menos foi o que pensei naquele instante.

Corri para onde a menina estava e, ao longe, eu a vi. Ela estava um pouco distante, mas seus cabelos não me enganaram.

Consigo, batiam duas longas e brancas asas, que refletiam em constrate à sua eterna beleza negra.



Apertei o rosário bem forte e voltei para a escadaria, escutando uma música suave entoar em minha mente...


terça-feira, janeiro 02, 2007

Quandos de Eternidade.

Quando te vi, ainda era pequeno.
Gota de água, sem cor e sem vestígio.
Uma criança de vida nova.

Quando te sorri, já era moço.
Verdades de mentiras em tua face.
Gritei: Vive tua existência!

Quando te amei, homem se formara.
Lindo tu eras, com graças e paixões.
Tudo passageiro, à flor da pele.

Quando te dei adeus, a morte me chamava.
Minha pele estava seca, e tu estavas divino.
Amor, minha criança, cravei-te um beijo na alma.