sábado, fevereiro 16, 2008

Mar, mar, mar, venha me encontrar!

Quatro horas da manhã, um carro parado perto da praia. Tudo estava deserto, exceto por uma mulher de trinta e sete anos, pele morena, cabelos castanhos e longos, os olhos penetrantes nas estrelas do céu. Estava deitada na areia, os pés encostando na água, que tentava incansavelmente alcançar seu corpo. As ondas pareciam tornar-se mais fortes, como se quisessem cobri-la inteira com seu sal, para poder sentir sua pele macia e acariciar seus cabelos bagunçados. O mar é realmente solitário, pensou. Mas quem sou eu para julgá-lo, afinal?
Sentou-se, a fim de tirar a areia de suas pernas. Não ligava nem um pouco para aquele vestido caro que seu caro marido havia comprado em uma loja caríssima. Não, nem um pouco. Queria que esse vestido sentisse o que é a sujeira, o pó e até mesmo a areia. Na verdade, ela não agüentava mais as coisas limpas, a casa arrumada e a janta feita. Não agüentava mais sua filha mimada pelo pai, não agüentava a solidão, de passar todos os dias sozinha e nos finais de semana ter que fazer sexo sem amor, sem palavras carinhosas, sem um como você está?, está bem?, como foi a semana?, senti sua falta, querida.
NÃO! Ela queria sentir algo senão esse sentimento de... nada, vazio, falta de. Sentia profundamente sua vida indo embora, sua vida sendo vivida sem ela, pois não era ela que se encontrava em seu corpo quando estava dentro daquela maldita casa, e sim o que mais tinha de falso dentro de si. Forçava tanto o sorriso naquelas reuniões de família, que seu marido tanto insistia em fazer, que à noite não conseguia mudar a expressão. E ele achava que ela não percebia os olhares entre ele e sua irmã. Uma parte do seu sangue estava tendo um caso com seu marido, e provavelmente estas eram as horas extras que ele fazia no trabalho. Mas não ligava. Não hoje. Não há alguns anos. Tudo se tornara insuportável, para ter ciúmes inúteis. O pior é que não conseguia olhar para nenhum homem, sentia nojo de todos eles, rancor.

- Moça? Está tudo bem?

Ele tinha os olhos mais azuis de todo o universo, e eram transparentes como água cristalina. Sua pele era morena, da cor da areia e seus cabelos eram negros como a noite. Ele era o mar. Só poderia ser.
Estava a praia deserta, por isso arrepiou-se por uma outra pessoa encontrá-la ali. Sentiu um pouco de medo mas tentou afastar essa sensação.

- Sim - continuou olhando para o mar, tentando ignorar aquele homem com ar de inteligente. Ele também usava um par de óculos que o deixava com uma seriedade compulsiva.

Ele sentou-se ao lado dela. Como? Ele... por quê? Preciso sair daqui! Ele ficou a olhar para as ondas batendo em umas pedras um pouco à direita, parecia encantado com aquilo. Estava descalço, com uma calça branca dobrada, para não sujar na areia e tinha uma mochila jeans surrada junto de si.

- Então, qual é seu nome, dama do mar? - disse, à vontade, com um doce sorriso no rosto. Seus dentes eram tão brancos, como pérolas encontradas nas profundezas dos oceanos.

- Clara - e sentiu vergonha de si mesma, por ter falado seu nome tão deliberadamente para um estranho qualquer. Sentiu-se com mais horror de si mesma, quando logo em seguida perguntou: - E o seu?

- Tenho vários nomes, minha dama - Clara enrusbeceu e sentiu uma pontada de raiva. - Mas pode me chamar de Miguel.

Miguel. Este era realmente um nome bonito, diferente. Sentiu-se atraída pelo corpo e pela voz e pelo nome daquele estranho, filho do mar. Pensou que já devia ser quase cinco horas da manhã, logo deveria retirar-se dali, se não quisesse que dessem por sua falta em casa. Mas realmente se importariam?
Ele a olhava de lado. Aquela mulher, com os olhos fixos na água, o vestido vermelho meio molhado meio sujo, um corpo atraente, perguntou-se se não estava se apaixonando. Talvez estivesse, pois esta deveria ser realmente uma mulher especial. De madrugada, sozinha, na praia, despreocupada.

- O que faz aqui, além de contemplar as águas?

- Ah, fugindo de casa, do marido e da filha. Todos me sugam e me tiram de dentro de mim e... - sabia que não deveria ter dito isso. - Vim jogar minha aliança no mar, como forma de morte total de casamento.

Respirou fundo. A raiva veio para dentro de si. Que ótimo, solto tudo que me aflinge para o primeiro estranho que cruza meu caminho. Fraqueza maldita, solidão contínua. Agarrou um pouco da areia que tocava seus dedos.
Ele ficou surpreso com sua extrema sinceridade. Pensou que ela diria logo em seguida que era uma brincadeira, mas isso não ocorreu. Mordeu os lábios um pouco.

- Não imaginei que fossem esses os seus motivos, talvez não devesse ter-lhe perguntado, não é mesmo? - fez uma longa pausa, onde o silêncio apossou-se completo de ambos. - Mas... tenho algo para você.

Ele abriu a mochila e tirou um papel bem grande, um papel de pintura. Entregou para a mulher. Antes de abri-lo, ela o ficou olhando, olhando, olhando. Viu seu piscar de olhos calmos, seus lábios sendo mordidos de vez em quando, mostrando sua ansiedade. E olhou para o papel. Teve um sobressalto, chegou a arregalar tanto os olhos que até mesmo ele se assustou. Havia um desenho dela ali; ela estava sentada na areia, olhando para o mar, os olhos molhados de lágrimas, e a praia inteira, todo o resto, parecia curvar-se em sua homenagem, por trazer-lhes o calor de sua presença.

- Eu moro aqui perto, e, um dia quando estava passando por aqui, te vi ao longe. No dia seguinte, você estava no mesmo lugar, na mesma hora. Passei a vir vê-la todos os dias, e comecei a trabalhar neste desenho. Hoje decidi entregar-lhe - ele falou tudo sem pausa, atropeladamente, cheio de arrepios e um pouco de vergonha.

Ela não pensou duas vezes. Puxou-lhe para perto de si e cravou-lhe um beijo nos lábios. Um beijo mesclado de emoções, de sentimentos que acabavam de nascer. Um beijo com "sentires" que há muito não sentia ou talvez nunca houvesse sentido.
Quando parou de beijá-lo, percebeu uma luz começando a aparecer mínima na linha do oceano, e levantou-se rápida.

- Amanhã. Você sabe que horas e onde encontrar-me.

E saiu correndo em busca de seu carro com uma alegria que há muito não sentia.

sexta-feira, fevereiro 15, 2008

Piscava os olhos, bem de leve, e tentava apertar o lençol. Na verdade, só conhecia o que apertava pois estava deitada, seu tato havia sumido por completo. Onde estava não sabia. Ou não lembrava. Talvez as duas opções unidas; poderia não saber, mas sentia que sabia de alguma forma e poderia ter esquecido o conhecimento.
A sensação era estranha demais. Quando piscava os olhos, poucas vezes, tão pesados como toneladas de chumbo, só via o branco, o branco completo, a alvidez contrastante, se é que isso era possível com nenhuma outra cor por perto. Mas era, pensava. Era branco contrastando com branco e um fio de vermelho escorrendo. Mas nunca as cores diferentes se misturavam.
E então, após um segundo de imobilidade e agonia, desesperadamente, uma parte de sua alma foi arrancada. Arrancada infinitas vezes, pedaço por pedaço, constante por constante. Ela gritava; um grito surdo, mas ainda assim um grito com a força do pensamento, com a força de toda a dor que emanava de si mesma, dor esta que ela não sabia que possuia. Pois a dor vem de dentro de nós para o mundo, arrebatando e destruindo todas as moléculas pelo caminho, para ocupar seu devido espaço. E mesclado com a dor, de alguma forma, vinha o arrependimento. Não sabia, não se lembrava... por quê. Por que a consciência sussurrava os pecados e a maldade de destruir-se a si mesma.

Acordou em meio à tempestade. Estava deitada no parapeito da janela, a risco de cair enquanto dormia. Algumas lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Novamente, dia após dia, o mesmo pesadelo. A sala branca, os olhares estranhos e sorrateiros, a dor e a culpa. Estava acorrentada e sabia disso. Não havia chave ou arma que a soltasse deste inferno. Aprisionada na própria mente e no passado, sorriu desgostosa.
As lembranças começaram a jorrar...

Era noite. Uma noite sombria, a noite que mais viria a odiar em sua vida. Ela estava amando um menino inteligente e calculista de 19 anos. Ele também a amava de volta. Estavam em sua casa, sozinhos... ela sentia que este seria o dia em que se entregaria por completo, colocaria sua alma nas mãos dele, e certamente confiaria cegamente. Ele não sabia como isto foi acontecer, mas estava amando uma menina de 13 anos, e sentia-se tão absurdamente bem perto dela... não, não queria machucá-la. Realmente, o amor fluía.
Escutaram um barulho na parte de baixo da casa, mas não ligaram. Somente quando ele notou os passos na escada é que percebeu o que fizera: a tranca, a maldita tranca. Esquecida. Rapidamente, empurrou a menina para dentro do armário, para logo depois dar de cara com um homem corpulento, portando uma arma... assustadora. Seu corpo tremeu, ao ver o sorriso de lado do gigante [gigante, pois ele se diminuiu inconscientemente para dentro de si, tal como uma fuga, tornando-se quase uma bactéria invisível]. O homem não pensou duas vezes, começou a espancá-lo, como se sentisse prazer naquilo.

- Onde está o dinheiro? - perguntou demasiadamente calmo, para os segundos anteriores.

O menino apenas balbuciou coisas sem sentido, e o homem voltou a chutá-lo. Ela não agüentou ver tudo aquilo, as lágrimas eram incontáveis, transformara-se em um rio. Escancarou a porta do armário e saiu gritando NÃONÃONÃO POR FAVOR NÃO O MACHUQUE. NÃO, PARE!
O gigante mordeu os lábios e aproximou-se da menina em apenas um passo, empurrou-a contra a parede e arrancou-lhe a blusa. Ela chorava, soluçava, perdia a respiração. Não podia fazer nada. E ele, seu amor, vomitava sangue e chorava por vê-la assim. O homem abriu seu zipper e ela gritou, desta vez de fora para dentro, sugou todo o ar, negou-se a abaixar as calças. Levou tapas, até ficar com o rosto roxo. E o homem, enfim, apagou seus sonhos.
O gigante, após usar seu corpo, deu um tiro nos dois braços e pernas do menino. Viu-o agonizar, e depois começou a revirar a casa inteira. Após dez minutos, pareceu ter encontrado o que queria e fugiu.
Ela desmaiou. Ele deixou de respirar. Quando acordou, estava na cama de um hospital. A agonia foi como o universo e mais além. A garganta entalou.
Porém, após três meses, aconteceu o desespero.

Estava grávida, recordou-se. Grávida da dor, grávida de um monstro, grávida do dia em que perdera o seu amor.
Voltou à sala branca. Voltou à perda de um pedaço de si mesma, que tentava excluir de sua vida: a criança que viria a nascer. Mas que foi morta, por sua própria escolha.

Sabia exatamente por que esse pesadelo sempre voltava: alguma parte de si sentia a falta do que nunca viveria. E, principalmente, ela sentia a falta da parte que se deixou morrer antes mesmo de vir a viver.

Acendeu o cigarro. O que está feito está feito, balbuciou. Mas sentia que isso não valia nada. Suas escolhas, após anos, ainda a afetavam. E isso era algo que devia aceitar. E, enquanto não se perdoasse, os pesadelos do passado continuariam a assombrá-la.

Desceu da janela e abriu a cortina. Hoje talvez seja um novo dia...