domingo, abril 25, 2010

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fiquei o dia inteiro lendo um livro. um fato normal no cotidiano dos afazeres e pensamentos da efemeridade. mas o que me surpreende é a capacidade de me sentir companhia de todas as horas, amiga e amante das páginas brancas e negras, sonho de promessas de vida eterna.
porque, ao abrir (docemente, como pernas prontas para o ato sexual) aquela capa dura e azul-escura, eu era vítima e assassina. o local do crime sempre o mesmo, com outras cores e outros toques, os personagens disfarçados de gente real, as minhas vontades soluçantes arranhando aquelas folhas.
o desespero ora leite ora álcool ia me encantando os dedos, as vozes em minha cabeça já não faziam parte só-de mim. a parte era o todo, e o todo era o abismo infinito entre mim e os milhares de eus translúcidos saltando da história e quebrando as lentes -tão finas- dos meus óculos.
de repente a campainha toca. fiquei atordoada, pois estava já presa por auréolas àquela narração de vida dormente. não sabia de onde vinha o som. acompanhei as pistas até a porta de casa, com o livro ainda sobre os dedos, e me deparei com o jornal de todos os dias. tive uma cesso de raiva! a realidade intransponível se encontrava quase encostada na beira dos meus pés. bati a porta furiosamente.

(sobre o desespero que se torna fúria: acordar e querer dormir, escovar os dentes e não conseguir arrancar o mau hálito dos que ainda sonham, afogar-se todos os dias na ducha fria e veloz que percorre o corpo como o tempo cansa as senhoras idosas de esperar pelo navio que nunca chega no horizonte, vestir-se e ver-se nua no espelho embaçado, ligar a televisão e só ter um canal com ruídos, comer o pão como quem tem sede e não há água (ou vinho) para sarar-se.

ainda, tentar dar as mãos para o desenho feito quando criança e colorido com lápis de cera e sentir a imensa solidão emanando da mentira e da falta do agora.)

o livro expressava e comprimia. queria suprir tudo dali, daquelas falas silenciosas, do amor e do ódio e da vida tão presente e nunca passageira das horas. poderia? precisava escolher os finais, inventava novas idéias e histórias para cada detalhe e gesto.
do desespero surgiu a criação. passaram a crescer as flores em cima do jardim seco, a regá-las de grafite conseguiu ser salva.

da luz que se dá algo, surge um preenchimento temporário.
vitimada, exerceu sua vontade de assassina e mãe.

terça-feira, abril 20, 2010

asas e facas.

sei que haverá uma noite em que acordarei aos prantos, e minha mãe estará chorando sobre o corpo morto de meu pai.
o tempo sua pelo corpo, vida em partitura de música italiana. janelas abertas para o mundo entrar nas casas, um sopro de tudo na poeira dos cantos dos cômodos.
mamãe costumava dizer que morcegos são pássaros esquecidos. fazem barulho à noite, assustam, cegos voam pelas árvores e por cima dos pensamentos. papai, com o sorriso no corpo, lia alguns de seus poemas sobre pássaros que fingiam ser morcegos.

- mãe!
os dedos passeios de carruagem enferrujada sobre os pêlos, poros, sol. sal invadindo a cachoeira crescente, brilho único de adeus. ainda de camisola, jazia estendida ao chão, as orelhas congelando no mármore branco, enquanto suas mãos apoiavam no coração.

- está fingindo, amor.
sufoquei com a explosão torturante que queria ser vomitada dos meus lábios. havia sonhado com o horizonte, com alguma música e instrumentos. sentia a vontade de voltar para a calmaria que emanava da cama.

ela ficou ali o dia inteiro. senti o cheiro de podridão vinda do corpo. sentei-me na cadeira de balanço só para sentir o terrível gosto do vai e vem. conversava com papai de vez em quando, arrastava o rosto na pedra dura, resmungava sobre a noite mal dormida. senti pena.
à noite, tive forças para parar de balançar.

- chegou a hora, você sabe.

levantou-se sem espirros, o sangue todo parecia estar no rosto.
os punhos fechados, como se guardassem algo dentro.
foi até a janela do apartamento e jogou um ser morto oito andares abaixo.
era um morcego.

não escutei a queda, quase que ironicamente, mas os seus grunhidos finos e perdidos: é besteira, não importa! é besteira, ouviu? onde estava com a cabeça?
fiquei assustada em alguns momentos, com vontade de chorar e gargalhar, mas o mais terrível de tudo foi mamãe ter aparecido com um pássaro engaiolado e cego para cuidar.

no enterro de papai rezei por piedade.