segunda-feira, abril 24, 2017

vou te contar uma coisa. tu não precisa ler, não precisa me dizer nada, juro: mas é que corto os cabelos para não cortar os pulsos. sabe de repente eu acordo numa manhã fria dessas de são paulo com o ar todo poluído, e eu percebo que quem tá poluída sou eu. não é o ar, não é. é o meu corpo inflamado de sujeira, de tanta coisa pra ser limpa. a gente pode limpar a casa (mas prefiro não perder meu tempo com isso) organizar os livros na prateleira soprar um pouco a poeira e fingir que tá tudo bem. a gente pode. a gente pode tanta coisa. mas o corpo continua imundo. imersonomundo. e é muita vastidão para ser só uma coisa, o corpo balança escorrega gira. contaminação pura que nem quando ando pelas ruas de são paulo e sinto vontade de chorar. é verdade - outro dia bem sentei num cantinho da avenida paulista e chorei durante meia hora até conseguir olhar pra cima. os olhos choraram tanto que nem pareciam mais ser meus olhos e choravam tanto que nem sabia mais por que chorava ou nem onde estava e quando olhei pra cima, olhei bem fundo, e vi que era eu que estava ali, chorando.
desculpa, me embolei na narrativa. nunca fui de contar coisas, só as gotas da chuva, sim, sempre contei gotas, talvez porque contá-las seja impossível. então é o mesmo que não contar nada. mas preciso contar até dez e me acalmar e te contar finalmente o que preciso. sabe o que é uma salvação? eu também não. mas eis que sinto que a salvação é sempre cortar os cabelos. como um milagre. a gente reza tanto pra nós mesmos, por que não atender as preces? essas que vêm sem nem sabermos de onde, mas que definitivamente estão ali mais do que o sapato que estamos usando.
então todos os dias tenho cortado os cabelos. normalmente só as pontas e já basta. mas esses dias cortei a franja toda torta e não é que respirei fundo e senti a calma do mundo? faz tanto tempo que não sentia essa pacificação, esse banho. há momentos porém que não aguento e meto a tesoura bem no meio do meu couro cabeludo e fico com vários buracos. é aí que consigo rir. rir de verdade. sabe a verdade do riso? é essa. estar cheia de buracos na cabeça e ao mesmo tempo entender que são só buracos na cabeça e nada mais.
ainda com a tesoura enferrujada de lágrimas e a sujeira contaminando das pontas das unhas quebradas até o último átomo que acha que me encosta preservo em sangue e palavras as células, essas mesmo, as células vivas.

segunda-feira, abril 17, 2017

amizade é a camisa com o botão descosturado
a gente perde em algum bar o maldito
ou no metrô cheio de botões também perdidos.
e de repente se dá conta, no espelho,
com o buraco feito abismo à mostra.
mas nosso corpo respira sem o botão
dá cicatriz, arrepio, tatuagem pro mundo.
e não é que a gente descobre qualquer dia
que aquele botão perdido virou flor na rua?
pra que falar da vida
se ela é guarda do próprio nome
armada com suas sílabas
só duas, mas inteiras
de um vazio que não lhe pertence.
rapta meu pensamento
minha loucura, minha dúvida
de na boca mover o som que rapidamente
ela me rouba.
sabe o que é engraçado?
a chuva me diz muita coisa
voltando com ela do trabalho
numa carona desavisada
guardei um segredo.
achei ridículo que logo ela
cinematográfica, ouvinte de mágoas
me fizesse esse pedido
tão sóbrio, mas inesperado:
- promete.
pulando poças, escutando suas sílabas
lembrei daquele dia
que te falei da chuva
sabe?
e não era preciso:
você já conhecia todos os segredos.