sábado, julho 14, 2018

não é o corpo
não é meu 
corpo
útero
fígado
sangue
coração
o que tu quer
se chama pele
se inflama toque
se rasga lâmina
se lambe e sente.
não sou
eu
sou cobra viva
escama ou veneno
sexo ou alimento
vai tentar a sorte?
ela, em alguns dias desastrosos, pensava: de hoje não passa. milagre ou catástrofe, não há raio caindo em lugar algum. da janela de seu apartamento naquela rua silenciosa, sem grades porque não tem filhos, sem rede porque não tem gatos, pendurava as pernas sem nenhum impedimento. a iminência da queda era sua reza, seu canto torto. sentado ao seu lado, o tranquilo girassol apontava pro lado oposto, estava de mal com a mulher que esquecera de regá-lo. se não conseguia tomar conta de uma flor no pequeno espaço de sua vida frágil, como seria possível aguentar todos os anos? era preciso beber água todos os dias, entre outras obrigações.
meditava de frente pra morte. tranquilamente, fechava os olhos e esvaziava a cabeça. se eu cair, morro antes ou só no chão? e o poema que deixei incompleto em cima da mesa? ainda preciso tomar um copo de café. o perfume de jasmins do outro lado da rua contaminava seus pensamentos, agora pensava em forma de cheiro, estava confusa como só uma flor pode estar.
o interfone tocou. saiu de seu jardim. atendeu. desceu as escadas correndo. era sua entrega: bolo de laranja da padaria do seu zé. desmarcou seu encontro e ligou a cafeteira. qualquer outra coisa pode esperar mais um pouquinho. há muitas noites pela frente e uma janela que não sai do lugar.
se eu nascesse gato 
certeza já não teria nenhuma 
das sete vidas
ser humano finge bem 
saber a iminência 
da única queda.
quando não há nada a ser 
dito o silêncio que flutua
em banheira de pensamento
como uma esponja de criança 
absorvendo água sabão
e o dia inteiro
tristemente
sujo de incertezas
quando não há outra
utilidade para essa esponja
que poderia ser de pedra ser de
vidro, estilhaçada à beira do
corpo assobio
uma melodia disforme
visto que não sei assobiar
isso também é dizer
nada só que assim
afogo alguma coisa
em vez de
me afundar.
poema tem que ser
pequeno
se alto 
mata o silêncio 
falar baixinho alcança 
até o inferno.
já faz tempo 
e nesse espaço me adequei
a sentar-me 
desconfortavelmente 
de costas pro relógio da casa
na mesa um copo dágua
isenta de degradação
olho pra ele durante muito
espero não envelhecer
assim pela noite
não consigo dormir
já faz tempo
faz outras coisas também
prefiro não dizer
se não digo céu o pássaro
não tem explicação
mas afirmar o que guardo
atrás de mim
em todos os cantos
dessa casa silenciosa
seria justificar minha
perdição.
às vezes me pergunto
porque não há mais
ninguém que me ouça
se em outra vida
outro sonho
me deram o nome
penélope
sinto que estou
à espera de alguma
coisa nenhuma
não me entristeço
teci plumas de paisagem
memória escondida na selva
não preciso ser salva
pelo menos
nessa vida
a matéria do impossível
é meu único navio.
olha
às vezes não quero quebrar 
o verso o copo
na tua cara
a verdade é que
quando
te peço te impeço
olha
quero dizer
vem não tenha
medo das palavras
mais do que tenho medo
do teu olhar.
algum jasmim invade a
fresta
do umbral não 
vejo nada
como poderia se
procuro um cheiro?
perfume é
quando está na rua
não é
quando digo que sei o nome
da flor
te pergunto:
sente?
você mente.
não tem ideia do que
estou falando.
um poema solar:
meu amor, estou tão
feliz. é
possível a escrita 
iluminada da não-
dor. que
engraçado, baby
confesso
não sei não
sei do que se des
trata tal poema.
a verdade como diria
cristo, aquele homem
salvador, bondoso
é que morreria todos
os dias
novamente
para trocar dor por
salvação.
só que não é o caso.
gosto de ler poemas como
quem lambe ferida
encostar a língua
na dor do outro
o gosto acre
doce só no final
o último verso é
sempre de açúcar.
poema se faz
assim:
palavra.
e uma dose de 
cachaça ou
silêncio.
eu gostaria de não escrever mais nada. escrever é cansativo. escrever está me arrancando a pele e me esfolando viva. tudo que não tem explicação me atordoa: a vida, o amor, a escrita, teu cheiro. achava que hiato era a pior coisa do mundo. não, é ser consumida por palavras, é ter poemas como colírio nos olhos causando insônia. abro a janela de casa e não vejo árvores, vejo folhas cheias de versos, pingando orvalhos soluçantes.
amanhece e não durmo. quando o sono vem, bicho raro, sonho epopeia. isso é castigo? quanto mais leio mais leio. alguém inventa um livro travesseiro pra eu apoiar a cabeça e ter oito horas de paz. não sou exigente: um cochilo já basta.
há um grito
na rua no peito
ainda outro dia no intervalo 
da aula do trabalho
enquanto o ônibus parava
no sinal no medo de
cochilar
te vi gritar, menino
achei que era um protesto
palavra de ordem
black bloc quebrando tudo
a memória não cessa
o grito faminto
na beira
da emergência
como podemos parar
de lutar?
o amor não suporta 
nada
não há
contenção para chuva 
se já nos acostumamos 
ao sertão.
o amor não suporta
nadar
se desmorona
não sabe construir
barco e buscar outra
morada.
não suporto
o amor
desisti de
crowdfunding
não se pode comprar
o insuportável.
tenho esquecido 
nomes
lugares
acontecimentos
aquele olhar que
tenho esquecido
no peito.
esqueço uma
síla
baíamos descobrir
o mundo.
tristeza te faz viver pela metade.
olha, olha fundo, até alcançar o epicentro dessas rugas que se formam embaixo dos meus olhos, tenho vinte e seis anos e algumas rugas que tenho certeza que se formaram de tanto que choro ou de tanto que fumo, ou uma mistura das duas coisas, acho que elas não deveriam estar ali tão cedo, daí que quando sorrio aparece a velhice do pensamento, tem dias que me sinto assim, profundamente velha, e isso não tem a ver com as rugas, mas com um peso estranho que sempre esteve comigo desde quando era criança e sentava escondida dentro de um armário para ler livros, ou quando chorava no canto do quarto, do lado da escrivaninha, toda vez que o dia anoitecia, eu carregava o peso do tempo, imaginei tantos funerais, a solidão tem um cheiro que já reconheço, quando ela se aproxima entendo seu perfume e sei que estou viciada em sentir-me só, estar muito tempo ao lado de outras pessoas me causa abstinência, preciso enfiar a cabeça em bueiros, dar de cara com ratos que me enxergam como realmente sou, eles sabem mais que eu sobre a vida, sabem mais que eu sobre minhas rugas, e enxergam, enxergam realmente o significado de um rastro nessa coisa esquisita que nomeamos de corpo.
patologia
certas doenças não
se sabe o nome nem
o número certo elas
mesmas tem algum tipo
de opinião
dicionário serve não
serve pra essas
bobeiras
porque é não
é? bobeira essa
coisa chamada
surto ou
poema.
fazia dias que não chorava.
incrível que pareça 
não aguento mais escrever sobre dor. 
virginia estava certa?
o peso 
do feminino,
do choro,
a alteridade duvidosa
(uma vez que amor só pode ser outra coisa)
aliás,
saindo do parênteses
pode ser outra coisa?
o quê?
chamar de pássaro
e deixá-lo voar
chamar de pássaro
e matá-lo com a espingarda
sou mulher
mas sou armada
como uma aranha na quina do box.
será que estou atrapalhada?
será que essa dor é um saco de mercado
usado pra me oprimir
e me sufocar?
estou suicidando minha linguagem
preciso escrever sobre a guerra,
sobre o universo
panfletar as palavras?
não confio em semideuses.
não confio em poemas de amor.
nunca gostei
dessa coisa chamada escrita
de mulher
nunca gozei 
(porém)
com um poema
de macho.
nunca pensei assim:
é abril, e tenho cartas.
é junho, e daí?
não tenho nada.
cada mês deveria ter um segredo
ou talvez seja superfície demais.
se mês fosse um oceano
eu diria que tenho um peixe
mas o que eu faria com isso?
não há memória
quando a conversa se embola
e vira outra história.
se eu transformar
mês em mesa
posso comer o peixe?
há tanta coisa a se fazer
em uma mesa que
seis minutos valem mais que um mês.
experimentralismo
olha
não é de concreto nem
vem
de em qualquer lugar
é de abrir a jaula
eu já te dis
se por acaso tu
vi
er claro que te deixo
entrar.
meu bem, juro que se você demorar mais um pouco vou-me embora para pasárgada e te deixo com um sorvete derretendo na mão aguardando um ônibus que possivelmente quebrou na avenida brasil. as coisas mais terríveis da vida acontecem nos momentos de espera, e eu estou evitando horroridades. por isso toda vez que o relógio caduca no silêncio da tarde sei que é hora de ir embora. quando nasci, um pedaço de algodão, soprou por aí um vento estranho e fui sendo carregada rua abaixo. que engraçado! ser algodão é coisa estranha, você se desfarela, se suja, fica impróprio, mas vou te dizer... é de uma leveza! não tenho mais tempo, o mundo consome muito das minhas arestas. tchau.
preciso aceitar estranhezas
como esperar que um seja familiar
se nem eu mesma me reconheço?
às vezes me espanto com uma frase que disse
me pergunto: mas o que é isso? 
tenho certeza, não penso
sou pensada
daí que me indigno quando te estranho
imagina que absurdo!
aceito o clichê:
para não entender o outro,
é preciso não se entender primeiro.