quando se está deprimido, maria pensava, que coisa mais louca que é lavar a louça. parece quase um mergulho no livro de dante, com os cacos cortando as mãos. a demora de dias passando pela frente da sujeira, o peso do corpo beirando a pia como vermes beiram o lixo: surgem de repente, como obra divina, e parasitam ali até que sejam expulsos por intervenção humana.
sempre esperou um milagre, não que rezasse, mas fazia sentido a espera. o que mais fazer senão esperar longamente para que a depressão fosse embora? as pessoas acham que depressão é qualquer coisa quando na verdade é um cheiro insuportável, como o da louça acumulada. ela convivia com esse cheiro até que esquecia dele, até que o normal fosse ele mesmo, esse cheiro de merda.
havia dias que descia as escadas do prédio e parecia entrar num labirinto, e olha que as escadas nem faziam círculo. estava já indiferente às baratas mortas e nem filosofava quando via a gosma que saía delas rente aos degraus. não havia o que fazer, e às vezes invejava suas mortes tão sem sentido e tão naturais e tão repentinas, assim como invejava a felicidade amena dos gatos que dormem tão tranquilos, e miam pedindo comida e quando sortudos são atendidos, e quando não, correm pelas ruas sem saber que estão na rua e que existem casas com outros gatos que não correm.
que coisa mais estranha essa de ter que lavar a louça quando o que se quer na verdade é quebrá-la. e não ter mais pratos onde comer, alimentar-se do resto das memórias que ainda invadem as frestas da porta e trazem seu aroma de incenso que sobrepõe o cheiro de comida estragada.
maria tem um grande desentendimento com seu corpo que pede para adormecer por longos dias enquanto é necessário fazer essas coisas da vida, que ninguém nunca tá muito satisfeito mas continua fazendo. comprou uma muleta numa loja perto do seu apê, pra arrastar o corpo pelos cantos, para chegar até a pia onde via essa louça maldita e onde já não sentia muito bem o cheiro da podridão.
este é o momento exato em que olha pra ela e se abisma e suspira e cansada senta no chão, cantarolando em lágrimas aquela música que costumava tocar na rádio na década de 90, onde era fácil lavar a louça e até enxugá-la. que coisa mais louca.