Quatro horas da manhã, um carro parado perto da praia. Tudo estava deserto, exceto por uma mulher de trinta e sete anos, pele morena, cabelos castanhos e longos, os olhos penetrantes nas estrelas do céu. Estava deitada na areia, os pés encostando na água, que tentava incansavelmente alcançar seu corpo. As ondas pareciam tornar-se mais fortes, como se quisessem cobri-la inteira com seu sal, para poder sentir sua pele macia e acariciar seus cabelos bagunçados. O mar é realmente solitário, pensou. Mas quem sou eu para julgá-lo, afinal?
Sentou-se, a fim de tirar a areia de suas pernas. Não ligava nem um pouco para aquele vestido caro que seu caro marido havia comprado em uma loja caríssima. Não, nem um pouco. Queria que esse vestido sentisse o que é a sujeira, o pó e até mesmo a areia. Na verdade, ela não agüentava mais as coisas limpas, a casa arrumada e a janta feita. Não agüentava mais sua filha mimada pelo pai, não agüentava a solidão, de passar todos os dias sozinha e nos finais de semana ter que fazer sexo sem amor, sem palavras carinhosas, sem um como você está?, está bem?, como foi a semana?, senti sua falta, querida.
NÃO! Ela queria sentir algo senão esse sentimento de... nada, vazio, falta de. Sentia profundamente sua vida indo embora, sua vida sendo vivida sem ela, pois não era ela que se encontrava em seu corpo quando estava dentro daquela maldita casa, e sim o que mais tinha de falso dentro de si. Forçava tanto o sorriso naquelas reuniões de família, que seu marido tanto insistia em fazer, que à noite não conseguia mudar a expressão. E ele achava que ela não percebia os olhares entre ele e sua irmã. Uma parte do seu sangue estava tendo um caso com seu marido, e provavelmente estas eram as horas extras que ele fazia no trabalho. Mas não ligava. Não hoje. Não há alguns anos. Tudo se tornara insuportável, para ter ciúmes inúteis. O pior é que não conseguia olhar para nenhum homem, sentia nojo de todos eles, rancor.
- Moça? Está tudo bem?
Ele tinha os olhos mais azuis de todo o universo, e eram transparentes como água cristalina. Sua pele era morena, da cor da areia e seus cabelos eram negros como a noite. Ele era o mar. Só poderia ser.
Estava a praia deserta, por isso arrepiou-se por uma outra pessoa encontrá-la ali. Sentiu um pouco de medo mas tentou afastar essa sensação.
- Sim - continuou olhando para o mar, tentando ignorar aquele homem com ar de inteligente. Ele também usava um par de óculos que o deixava com uma seriedade compulsiva.
Ele sentou-se ao lado dela. Como? Ele... por quê? Preciso sair daqui! Ele ficou a olhar para as ondas batendo em umas pedras um pouco à direita, parecia encantado com aquilo. Estava descalço, com uma calça branca dobrada, para não sujar na areia e tinha uma mochila jeans surrada junto de si.
- Então, qual é seu nome, dama do mar? - disse, à vontade, com um doce sorriso no rosto. Seus dentes eram tão brancos, como pérolas encontradas nas profundezas dos oceanos.
- Clara - e sentiu vergonha de si mesma, por ter falado seu nome tão deliberadamente para um estranho qualquer. Sentiu-se com mais horror de si mesma, quando logo em seguida perguntou: - E o seu?
- Tenho vários nomes, minha dama - Clara enrusbeceu e sentiu uma pontada de raiva. - Mas pode me chamar de Miguel.
Miguel. Este era realmente um nome bonito, diferente. Sentiu-se atraída pelo corpo e pela voz e pelo nome daquele estranho, filho do mar. Pensou que já devia ser quase cinco horas da manhã, logo deveria retirar-se dali, se não quisesse que dessem por sua falta em casa. Mas realmente se importariam?
Ele a olhava de lado. Aquela mulher, com os olhos fixos na água, o vestido vermelho meio molhado meio sujo, um corpo atraente, perguntou-se se não estava se apaixonando. Talvez estivesse, pois esta deveria ser realmente uma mulher especial. De madrugada, sozinha, na praia, despreocupada.
- O que faz aqui, além de contemplar as águas?
- Ah, fugindo de casa, do marido e da filha. Todos me sugam e me tiram de dentro de mim e... - sabia que não deveria ter dito isso. - Vim jogar minha aliança no mar, como forma de morte total de casamento.
Respirou fundo. A raiva veio para dentro de si. Que ótimo, solto tudo que me aflinge para o primeiro estranho que cruza meu caminho. Fraqueza maldita, solidão contínua. Agarrou um pouco da areia que tocava seus dedos.
Ele ficou surpreso com sua extrema sinceridade. Pensou que ela diria logo em seguida que era uma brincadeira, mas isso não ocorreu. Mordeu os lábios um pouco.
- Não imaginei que fossem esses os seus motivos, talvez não devesse ter-lhe perguntado, não é mesmo? - fez uma longa pausa, onde o silêncio apossou-se completo de ambos. - Mas... tenho algo para você.
Ele abriu a mochila e tirou um papel bem grande, um papel de pintura. Entregou para a mulher. Antes de abri-lo, ela o ficou olhando, olhando, olhando. Viu seu piscar de olhos calmos, seus lábios sendo mordidos de vez em quando, mostrando sua ansiedade. E olhou para o papel. Teve um sobressalto, chegou a arregalar tanto os olhos que até mesmo ele se assustou. Havia um desenho dela ali; ela estava sentada na areia, olhando para o mar, os olhos molhados de lágrimas, e a praia inteira, todo o resto, parecia curvar-se em sua homenagem, por trazer-lhes o calor de sua presença.
- Eu moro aqui perto, e, um dia quando estava passando por aqui, te vi ao longe. No dia seguinte, você estava no mesmo lugar, na mesma hora. Passei a vir vê-la todos os dias, e comecei a trabalhar neste desenho. Hoje decidi entregar-lhe - ele falou tudo sem pausa, atropeladamente, cheio de arrepios e um pouco de vergonha.
Ela não pensou duas vezes. Puxou-lhe para perto de si e cravou-lhe um beijo nos lábios. Um beijo mesclado de emoções, de sentimentos que acabavam de nascer. Um beijo com "sentires" que há muito não sentia ou talvez nunca houvesse sentido.
Quando parou de beijá-lo, percebeu uma luz começando a aparecer mínima na linha do oceano, e levantou-se rápida.
- Amanhã. Você sabe que horas e onde encontrar-me.
E saiu correndo em busca de seu carro com uma alegria que há muito não sentia.
3 comentários:
Caraca, que lindo! Adorei, sério!
principalmente a parte da pintura!
fiquei com medo que ele fosse alguma coisa sobrenatural. Que bom que era real. Assim torna tudo mais possível, há esperança para ela. Gostei!
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