Não existe mais nada agora. Nem um pingo de água, nem um milésimo de poeira, nem um átomo. Eu limpei tudo, cada vestígio de pegada, todo pequeno som que se escondia atrás da porta e embaixo dos tapetes. Rasguei as cortinas do meu quarto e abri as janelas.
Tão profundo.
Vi as pessoas passeando pela rua e achei-as tão belas, tão felizes, tão humanas. E eu, ah!, eu passava as mãos pelo meu pescoço e tentava não arranhar minha alma. Porque eu queria, naquele momento, acabar com tudo. Jogar-me da janela, gritar, impedir! Sonhar.
Eu descobri que nunca precisei de nada. Por isso acabei com tudo. Mas agora tinha inveja. Completamente. Queria ter a pele menos pálida e mais viva, queria ter meias vermelhas e poder correr pelo parque aos domingos e não, não de novo. Eu quebraria os balanços e as gangorras. Tenho certeza.
Puxem as cortinas, por favor!
Estão rasgadas.
Eu rasguei-as. Para que não me tentasse a puxá-las e esconder o mundo inteiro de fora. Porque tudo que eu consigo fazer agora é olhar para minhas mãos (e ainda assim achá-las estranhas!) e perceber o quanto são minhas. O quanto têm curvas e linhas e desenhos e o quanto de mim está ali. E se eu olhasse para a mão de qualquer outra pessoa, iria querer gritar! Gritar de susto, de vastidão e de distância. Não, não posso ser tocada.
Depois que você abriu a porta e bateu-a, vi você acenar da rua para mim e achei seus dedos mentirosos e mesquinhos. A verdade é que você não acenou e não havia dedos com sentimentos. Você nunca existiu. Os sapatos com que eu gritava todos os dias nunca conheceram o mundo. E eu sempre reclamava que empoeiravam a casa e que não conseguiam ficar embaixo da cama por nem um dia! A poeira era falsa, criada. Escrita? Totalmente.
Eu tornei-me algo mais que não eu. Fingia todos os dias e imaginava. Até… até não sei quando. Lembro-me apenas de você (quem?) ter quebrado o espelho e também minha realidade. De ter-me deixado sozinha verdadeiramente. Sempre estive e agora sei. Quando o sol descia, e íamos à beira da praia, sentia-me plena, completa e feliz. Deve ter sido tudo apenas uma armadilha do mar e daquelas intermináveis ondas que me sugavam o olhar para o horizonte e para onde parecia ser o coração do mundo.
Por que minhas mãos têm vida própria e assustam-me? Parecem tão fora e tão dentro de mim ao mesmo tempo, como se uma fosse parte do tudo e outra parte do que sinto. Se é que o que sinto existe. Pois metade de mim já se provou desexistir.
Não há solução para agora. Tudo parecia tão meu, tão perto, tão… tocável, de todas as formas.
Tudo que eu queria era poder puxar as cortinas e impedir o ar contagioso de entrar por entre a janela. Mesmo que a feche, ele entra por imagens e impregna meu quarto de sorrisos e sentimentos milhares.
Por isso, mais uma vez repito, rasguei-a.
Você nunca mais entrará pela fechadura e me trancará. Tudo está aberto. Não! Não quero mãos e dedos diferentes e cheios de vida entrando. Não!
Arrependo-me, não tenho mais cortina, não tenho!
Quando a realidade real toca minha realidade imaginária, tudo que posso sentir é medo.
Que pelo menos esse sentimento seja real.
Um comentário:
"Por que minhas mãos têm vida própria e assustam-me? Parecem tão fora e tão dentro de mim ao mesmo tempo, como se uma fosse parte do tudo e outra parte do que sinto. Se é que o que sinto existe. Pois metade de mim já se provou desexistir."
bravo! A melhor passagem do texto!
Belo texto, aliás ;)
Seu estilo está ficando cada vez mais próprio.
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