terça-feira, maio 20, 2008

Pela arte, ao fim do que é doce.

E lá estava ela. O vestido apertado ao corpo, longo, muito longo, quase encostando no chão de mármore. O cabelo preso em um rabo de cavalo delicado, as unhas grandes, pintadas de rosa-claro. Encarava-me profundamente como se eu tivesse a resposta para todas as suas perguntas. Respostas desnecessárias, eu sabia, pois todas as perguntas eram inúteis. Algumas vezes ela levanta a mão até a altura da boca, como se fosse roer as unhas, mas abaixava-a segundos após, lembrando-se que iria quebrar a perfeição de seu corpo inteiro. E como ela era perfeita!

Era a mulher que eu mais amara durante toda a minha vida. E eu nunca fui muito de amar, não o suficiente para ser considerado amor. A verdade é que o tempo passa, o sentimento é consumido, os verbos são conjugados e o costume torna-se doentio. Tudo que eu sentia agora era oriundo de profunda admiração e nojo. Duas coisas essenciais para olhar aquele par de óculos e querer quebrá-lo em pedaços, para que ela nunca mais o ajeite com aqueles dedos compridos e delicados. Pois, ao quebrá-lo, quebro-lhe também as mãos. E, ao quebrar suas mãos, quebro-lhe toda vida de escritora.

Ela continuava a olhar-me, com aqueles olhos famintos, o sorriso enviesado. Às vezes eu queria desesperar-me o suficiente para queimar-lhe a face com o café quente que repousava ao nosso lado. Mas eu não conseguia. Não, era tudo tão forçado, eu abria o jornal, fingia entender as palavras que estava lendo, e ela, ah ela!, estava observando-me para colocar a minha dócil personalidade mentirosa em um de seus contos filosóficos que eu tanto odiava e repugnava.

Açúcar. Ela perguntou-me se havia mais açúcar. Intriguei-me, pois ela sempre gostara de tudo tão moderado, inclusive, é claro, das palavras. Foi absolutamente dócil e surpreendedora, por favor, mais açúcar. E eu fui, solícito, até a cozinha, buscar o pote açucarado. Quando voltei à nossa varanda com vista para o mar, ela estava lendo o jornal exatamente na página de horóscopos, situação que deixou-me deveras constrangido, pois, na verdade, era a página em que eu estava tão concentrado anteriormente. Ela ironizou com os olhos, mas nada disse. Pegou o pote.

Extremamente compenetrada, colocou uma, duas, três, quatro, quinze colheradas de açúcar em seu café. Minha sombrancelha levantou-se e fiz menção de perguntar que absurdo era aquele que se sucedia, mas ela levantou-se imediatamente com a xícara na mão e foi até o meu lado.

- A vida é tão amarga, não acha? - Quase um suspiro em meus ouvidos, um sorpo de vento delicioso.

- Às vezes - o impulso levou-me quase a perguntar por que diabos ela estava-me dizendo aquilo e porque tinha uma xícara com mais açúcar que café na mão.

Sempre fui controlado demais. Nunca, nunca disse o que realmente pensava. Se pudesse soltar as palavras, naquele momento, gritaria que ela estava enlouquecendo, que eu a odiava por ter roubado de mim o que mais amava. Não mais conseguia sentir por ela o que inicialmente sentia. Eu quase a odiava completamente. Ela era uma sombra em meu jardim, o vampiro de minhas idéias. Fazia-me consumir quase três maços de cigarro por dia em troca de imaginação alguma. Sim, ela era a âncora de meus pensamentos. Maldita!

- Você não acha que deveríamos pôr mais açúcar em nossos laços, em nossas vidas, em nosso amor?

Amor? Não, querida, não há mais amor. Eu amava-a porque era genial amá-la, assim como suas palavras consumiam meus olhos tristemente. Você era parecida comigo em tantos aspectos que me encantei com a impressão de não estar sozinho no mundo, de ter a compreensão da realidade unitária. Não obstante, você estagnou, literal e literalmente, minhas palavras. Durante todos esses anos não consigo mais escrever como escrevia, pois lá está você, pedindo-me conselhos sobre que idéia usar, como usar e não deixando-me respirar, em momento algum, as idéias que surgiam na minha mente.

- Gosto da vida azeda. A vida doce demais enjoar-me-ia - pisquei levemente os olhos ao proferir essa frase.

Ela assustou-se, definitivamente, pois sua expressão facial alterou-se, coisa que raras as vezes deixava acontecer. Mordeu os lábios levemente e, surpreendendo-me, atirou a xícara de porcelana na parede. Espatifou-se e o açúcar espalhou-se no chão. Algumas lágrimas caíram de seu rosto, enquanto ela involuntariamente corria para o quarto para pegar suas coisas importantes e socar tudo dentro de uma mala. Ela havia percebido tudo que eu queria falar-lhe em apenas uma frase metafórica. E como meu coração palpitou de alegria.

Voltou-se a mim, com um livro de capa vermelha entitulado “Ele” e com duas alianças, com nossos nomes grafados em cada uma delas. Largou-os na mesa e saiu porta afora.

Hoje à noite, quando terminei de ler o livro, senti o peso do que havia feito totalmente em cima de minha consciência. As alianças, coloquei-as dentro de outra xícara, com muito açúcar e despejei tudo na areia em frente à minha casa. Chorei um pouco e gostei de chorar. Há muito tempo não chorava. E era delicioso sofrer. Ah, se era.

Peguei um lápis e um papel e comecei a escrever.

- Como é amargo ser livre.