segunda-feira, fevereiro 26, 2018

descobri que não sei ser contemporânea:
acho que meu tempo nunca teceu
escondo o olhar em livros empoeirados
tenho paixão e aversão aos clássicos
não sei falar com os outros
quando vejo um artista
essa palavra pesada
hippie-chic
na rua viro
a cara
cuspo no chão
faço um feitiço no cruzamento e vou embora
de repente é só coisa de gente maluca
ou de um grande silêncio que me pede todos os dias
me pede no ouvido:
quieta-te
quieta-te:
assim posso sussurrar.
plantar a flor no asfalto
não é ato
de coragem
é passo
que parece compasso
e demora
demora
demora
mas ver o asfalto
queimar os pés descalços
pisar num vidro de garrafa abandonada
não parece boa ideia
mas também é ato
acho
uma lágrima
que devo molhar a semente
guardo o choro então
todos os dias
para jogar no asfalto
como quem joga poker
esperando enganar o mundo
não engano nem o reflexo da poça que criei
sempre perdi o embaralho
e também o desejo
outro dia descobri onde estava
por isso escrevi uma flor
um asfalto
e mais nada.
será que nasceu?
por que não gostamos de ler poemas e por que eles são uma forma profunda de aprendizado
quando entramos em contato com a poesia pela primeira vez ou de forma superficial, não importa a idade que temos, se somos crianças ou adultos mesmo que já formados com um grau de leitura regular e profunda, sentimos um estranhamento que beira o desconforto e o abismo.
ler um poema não é uma coisa fácil. e não é porque palavras difíceis são usadas ou porque o escritor resolveu tirar um sarro com a nossa cara. é porque a poesia é uma das formas mais tortuosas de lidar com o inconsciente. ler um poema é então lidar não só com uma floresta escura e cheia de armadilhas, mas com duas estranhas florestas dentro de um mapa desfigurado envoltas por outras florestas.
o desafio é o encontro com o lugar-espanto do outro partindo do nosso próprio espanto. então para ler um poema é preciso mergulhar de uma altura indizível dentro de um oceano inquieto, turbulento e amedrontador.
não basta ler uma vez, é preciso ler milhares. o inconsciente nos larga pistas, mas é preciso usar a lupa e procurar. se não há paciência nem vontade pelo desconhecido é impossível a abertura para a poesia.
não gostamos de ler poemas de início porque estamos desacostumados com nossos sonhos, com os barulhos presos dentro de alguma parte de nossa escuridão. negamos a estranheza. primeiro a nossa mesma, depois e mais ainda a do outro.
quando nos permitimos, porém, a abertura nos leva por caminhos inacreditáveis e que nos sorvem de habitação, comida e sobrevivência. poesia é uma das formas mais íntimas de abraçar o que há de estranho no outro e em nós mesmos. acolher um poema é achar a chave daquele casebre mal iluminado no meio da floresta que sempre quisemos explorar, mas deixamos para depois. para que procurar estrelas quando em tempos como esse acendemos pequenos sóis artificiais em nossos quartos? que bom que sempre toquei estrelas, guardo comigo sempre os dedos queimados de susto e paixão.
dar à luz é sempre uma oferenda. a gente nasce já doando nosso grito, nossa solidão. sair da escuridão com um choro profundo de aceitação e destino. dar à luz é sempre pagar as contas para o futuro. aquele grito se repete depois com alguns cinco dez anos quando perdemos nossa avó. nascemos já abraçados com o trauma, e ele nos chama e nos exige, pode ter certeza.
por isso quando ando pelas árvores e vejo suas sombras e uso delas para me esconder de qualquer coisa, lembro que o grito está ecoando em suas folhas, em suas sementes. enquanto corro já nascem outras flores, enquanto danço já morrem outras flores. às vezes planto, às vezes pisoteio.
dizem que há milhares de formas de ver o mundo, para mim só existem duas: a de quem o vê sorrindo e a de quem o vê chorando. todo o resto são nuances que se encontram, se desfazem, se misturam em cores. sentar no abismo e ter a felicidade de quem está à beira; sentar no abismo e sentir-se o próprio abismo, e prceber que não existe beira, só queda.
há quem se jogue de paraquedas, quem amarre uma corda na ponta e desça devagar. estou entre os que se jogam de braços abertos e já não sabem quem são enquanto caem.