quarta-feira, novembro 29, 2006

Porta que se fecha, Luz que se apaga.

Foi naquela manhã de vênus, ele estava parado na porta, quase uma estátua de alma viva. Eu nunca havia reparado no seu olhar sóbrio, atento a todos os detalhes que o mundo vomita em imagens e sons. Definitivamente, o peso da lua criava feridas, e eu nunca imaginei que só sua presença me faria tanto mal.
Nem ao menos se moveu para olhar-me. Continuou parado, sem expressão. Eu não me contive, queria gritar, chorar... morrer! Tudo justificava as minhas vontades, mas nada era suficiente para mantê-las vivas. Imaginei, por um momento, estar errada sobre tudo. Você ainda era meu, como o oceano e a linha do horizonte, como o sol e a lua. Mas era o doce engano, e, quando pisquei, a realidade respondeu com um sorriso.
Tinha uma garrafa de vodka na mão, olheiras profundas e parecia não respirar. Eu respirava descontroladamente e arranhava as mãos com as próprias unhas. Algumas lágrimas escorriam do meu rosto, mas os óculos as escondiam.
Senti sua face virando em minha direção. E seus lábios começavam, em frênesi, a formar os primeiros fonemas.

- Pare - eu disse. - De sua boca, agora, não quero ouvir palavras.

Ele não teve coragem de encarar-me. Abaixou a cabeça, como um cachorro com medo do dono. A mim, ele era um estranho. E, com toda paixão, para ele eu era o mesmo. Passou as mãos pelo cabelo. Sempre que fazia isto, era sinal de medo. Eu o conhecia melhor do que ninguém, era quase sangue em sangue, sem sangue.
Senti a janela trazer as lembranças. Pensei em correr e abraçá-lo e nunca mais ir para longe. Mas meus pés não se moviam e eu não lhes tirava a razão.
Há tanto tempo que o vazio dominava as paredes. Não era algo novo, essa sensação de desprezo que vivenciávamos naquele momento. O que eu sentia não era mais amor; era sentir apenas por sentir. E, pela forma que ele não respondia com a alma, sentia, também, a angústia.

- Acabou - as palavras saíram arrastadas, fui pega de súbito. - Esgotou-se o que achávamos que iria durar.

Eu abri a boca para tentar impedi-lo, mas ele já saia pela porta que estava encarando há horas. Corri até a janela e o vi, com seu andar apressado, pegando um taxi e provavelmente indo para longe, muito longe. Tentei gritar: "Não!". Mas nada de minha boca saiu, eu fiquei paralizada durante muito tempo, senti os primeiros raios solares encostando em minha pele, debruçada na janela.
Não conseguia pensar em mais nada. A mente estava vazia. Mas, afinal, não era isso que eu queria? Ver-me livre de um falso sentimento? Sentimento, que, junto ao ermo, parecia voltar a existir em verdade.

- Amor... amor.

Era essa voz suspirando na minha cabeça. Tentei calá-la, tentativas frustradas. Continuou durante horas, até que reparei os sentidos com pancadas na parede. Gritava com a minha mente, em briga contínua, mas, enfim, ganhei a guerra.
Vi o que não queria ver: eu estava sozinha. E dessa vez era para sempre, nada mais completaria o que eu costumava chamar de vontade de viver. Ele foi embora, pela mesma porta que entrava tantas vezes sorrindo e dizendo que me amava. Um amor que também por sua boca se fez extinto. Um amor que, somente em mim, será eterno.


Sentada hoje, na mesma janela por onde o vi partir, posso ver as luzes da cidade, ao longe, crescendo e diminuindo.

Crescendo e diminuindo...
E, enfim, apagando-se por completo.

Somente um pequeno vaga-lume continua a iluminar a triste cidade, que ainda sonha em ter suas grande luzes, crescentes e dimutas, de volta em seus braços.

terça-feira, novembro 21, 2006

As Quatro.

E, quando você menos espera, aquele gosto de não-sentir lhe vem ao pensamento.


Simplesmente, a cor da folha é verde. É verde porque é verde. E ponto. Não há o que discutir com relação a isso. O outono sempre vem para transformar sua cor: não importa, a alma é verde. Esta estação, de fato, acaba com a esperança de muitas folhas.
Conseguiu, alguma vez, ver a dor da folha ao cair da árvore? E o sentimento de vazio, que esta sente ao cair no chão e entender que nunca mais poderá encostar naqueles galhos altos de sua eterna mãe?

Dói na alma ver o outono chegar.

Vem-se a primavera. Não importa a ordem, eu apenas sei que um dia ela vem. E mata a inocência das flores. De crianças puras e até mesmo com cheiro de rosa, passam a gigantescas pétalas sortidas, que muitos dizem ser maravilhosas.
Imagine, então, que, um dia, uma linda criança do maravilhosíssimo reino metazoa, que não sabe nem ao menos o que vem a ser fotossíntese, vê uma linda margarida, que acabara de desabrochar para o mundo.
O que essa magnífica criança faz?

- Adeus, minha flor!

Enfim, mais uma história florida, que não se acabou em final feliz.


Pulemos o verão. Dele não gosto.

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E lá se vai uma latinha de Coca-Cola pela praia de Copacabana.



De repente, é um frio que bate na minha janela, e eu tento ver a neblina que sai dos céus e vem me visitar. Às vezes, eu consigo pegá-la e guardá-la um pouco no coração. Outras, ela simplesmente passa por mim com um pulo sem sair do solo.
E a cor do inverno é azul. Azul mais puro. Azul de tristeza, azul de alegria. Apenas azul, como o verde da folha.
Mas o inverno congela as almas, mata as pessoas de frio na rua. E o pesar que levamos de palavras, são menores, infelizmente, do que as dores físicas dos muitos que sofrem.


Mais um ano se passa.
Mais folhas verdes caem.
Mais flores crescem e perdem a inocência.
O sol ilumina forte.
Também o frio ilumina as almas e apaga os sentimentos.



E eu posso encostar nas lágrimas descontentes de Deus, ao perceber que a natureza é o fim da natureza. Ao perceber que a beleza destrói a beleza, para que outra beleza possa renascer em verdade.

terça-feira, novembro 14, 2006

Sanque Que Leva a Sangue.

- Noite linda, não?

Abaixou-se, acendeu um cigarro.

- Não, a noite não está linda - vai-se fumaça.

Expressão de espanto.

- Como não!

- Não, simples. Está suja. Cada estrela, um tiro no peito.

- Cala-te, homem! Quanto pessimismo!

- Tenho olhos para ver, não para enganar-me.


Silêncio. Os olhares não batiam. A verdade estava no céu e na terra e em qualquer lugar. Doce polissíndeto. Mas a noite era bonita. E, também, era abominável. Duas vidas distintas numa praça comum, um sofrimento e uma alegria. Ou uma alegria e um sofrimento? Velejavam
pelos campos cinzas do infinito.


- Arre! Como pode, de onde tira tanta amargura?

- Do mundo, caro amigo. Olhe ao seu redor, pobre ignorante. Não vê que é exceção?

- Exceção de quê?

- De sofrimento.


Locução dura. Vencida de tempos, aceitada há muito. Os risos estão poluídos com merda. Os abraços verdadeiros já se foram. O escárnio, de hoje, será vida de amanhã.


- Você sofre?

- Eu, como o mundo.

- Eu não sofro.

- Não há por que fazê-lo. Nunca precisou.

- E você já?

- Inúmeras vezes. Meu sofrimento é maior: está na alma.


Mais uma vez, o barulho de vozes cessou. Uma alma machucada por percepção além do que merecia. Um bocejo sem importância. Pobre é de quem nada percebe. Pobre de é quem tudo o faz. Jamais diria, pois, sorte destes e azar daqueles.


- Alma? Não acredito lá nisso!

- Ora, por isso não sofre de tal moléstia!

- Tenho dores de carne, de velhice, de rugas. Mas não sou sentimental.

- Justo.

- Justo o quê?

- Vindo de você.

- Como assim?

- Tem sorte, apenas.


Um soco na escuridão. Pisou no cigarro com expressão vazia. Queria fechar os olhos, mas, se o fizesse, veria tudo que se tem forçado a não ver.
O outro pensava em dinheiro.


- Sorte? Não ganhei na loteria, ainda.

- Sorte de ser qualquer pessoa que não me seja.

- Oh, pretensão!

- Quem dera que o fosse.

- Se isto não é pretensão, o que é?

- Desejo de matar-me a consciência.

- Não o entendo!

- Factualmente.

- Deixa disso! Vamos aproveitar a noite!

- Vai você.

- Vou-me, um beijo à sua consciência que não consigo entender.


Sem resposta, colocou seu chapéu e foi-se para as gargalhadas, puros prazeres da carne. Pernas, saias, dinheiro. Tudo que um homem poderia desejar.

Ele, sentado no meio-fio, permaneceu por lá até amanhecer. Observando a noite, sem conseguir levantar e tentar alegrar-se um pouco. Quando o sol nasceu, não conseguiu ver seu brilho, o cheiro de sangue ainda era insurpotável.
Pensava em seus filhos e em sua mulher. Como fora egoísta em reagir. Deveria ter entregue o dinheiro, ao invés de tê-lo segurado fixo em suas mãos.




Beirava à morte, e o homem, que o esfaqueou, beirava renascer na luxúria.

domingo, novembro 05, 2006

Amor de Piscada.

Foi até a esquina, era tarde da noite, voou os pensamentos até a janela da outra ponta da rua. As cortinas estavam fechadas. Com uma tristeza volvendo o rosto, sentou-se no meio-fio, esperando alguma luz acender-se na casa e, também, em seu coração.
Passou-se muito tempo: a agonia batia à porta. Nada acontecia. Já estava esperando há muito, as esperanças de aquilo acontecer já eram escassas. Mas não desistiria tão fácil. Esperara a semana inteira por aquele dia, por aquela noite tão difícil de obter-se mais de uma vez na semana. Em todo caso, nunca nenhum movimento era igual.
Um bêbado vinha virando o cruzamento, não temeu nem mesmo isso. Não sairia dali, enquanto seu principal objetivo não fosse cumprido. O homem vinha cambaleando e falando com algum amigo imaginário.

- Ae... cê sabe me dizer onde arranjo mais birita.. blow..?

Sentado no meio fio, com os olhos fixos na janela, não respondeu. Pensava apenas no momento em que perderia os sentidos e sua mente fugir-se-ia até o céu, junto com os deuses. Seus olhos perceberam o bêbado continuar seu caminho, levando aquele hálito de vida sem rumo. Ai, que nada mais importava. Poderiam explodir cidades e corações desgarrados, que ele não desgrudaria seus olhos dali.
Todo sábado à noite era a mesma coisa. Fugia de casa para ir até a esquina, e, depois de completada sua vontade, voltava para sua cama, sorrateiramente, e ia dormir, sonhando com o próximo dia que aquilo se repetiria novamente. Sonhava e via estrelas tão luminosas, que o cegavam da realidade de não possuí-las.
Estava perdido em pensamentos, quando seu coração acelerou mais rápido do que uma poerira repentina. A luz do andar de baixo fora acesa. Estava perto, conseguiu ouvir os passos lentos subirem degrau por degrau, cada toque ao chão era um apertar em seu peito.
A luz do quarto, a qual observara toda a noite, foi acesa. Deu um pulo e arregalou os olhos. Era agora, seu coração estava disparando a mil vaga-lumes. Uma música começou a tocar e enxarcar-lhe os lábios.

Respirou fundo e sonhou: talvez hoje me perceba, porque para sempre não hei de ficar escondido.

A janela foi aberta e todos os mundos coloridos também o foram. Beleza de deusa, tão rara quanto seus fios de cabelos louros e compridos. Ela respirou o ar da rua deserta, não reparou no pobre coração perdido olhando-a da escuridão. Apoiou um pouco os braços no umbral e tentou ler a carta que haviam deixado em sua porta, uma carta apócrifa e quase sem nexo.

"Ao amor, que vem a mim todas essas noites, ó deusa!
De você meu mundo é feito.
Vivo de ti,
De seu ar repentino.
Acorda-te!

Alguém está a te amar."

Deveria ser algum tipo de brincadeira, pensou. Suspirou um pouco, não podendo conter seus desejos íntimos de amor. Seria bela uma vida em conjunto incondiconal, pura de mais olhares.
Ele não aguentava mais olhá-la sem tê-la nos braços. Queria gritar: "Oh, amor, aqui eu estou!" Mas, bem sabia, isso não seria possível agora. Era apenas um mero garoto em contraste a uma deusa de beleza e sentimentos exuberantes. Guardou-se para si a agonia de não possuir seu amor.
Ela se cansou de olhar e nada ver. Resolveu ir dormir, o dia seguinte já estava a esperá-la. Olhou para a rua mais uma vez, e pareceu ter visto um vulto. Não deu importância e, com um piscar de olhos, fechou as janelas.
Caiu ao chão o pobre coração sozinho, chorou lágrimas de saudades. Pareceu-lhe que a eternidade não o pouparia de mais uma vista rápida da dona de suas dores. Conformou-se e levantou-se para voltar à sua casa, já sem vontade alguma de andar.

Ao dobrar a esquina, mandou beijos de saudade àquela janela de poucos instantes. Pousou-se em casa e se foi sonhar com aqueles olhos tão puros e dignos, os quais sempre tiravam-lhe o sono.

Em apenas um piscar de olhos, pensou, eu a amei.


E voltou-se à realidade.

sexta-feira, novembro 03, 2006

Ponto de Fuga.

Vem, agora, aquele gosto tão salgado à garganta, como se o choro não conseguisse escapar e resolvesse voltar para a alma. Muitas vezes, é apenas isso que acontece: um esquecimento. Em outras, a falta de amor e de gratidão crescem ao ponto de matar o esquecimento de tão incompleto.
Sonhei com você, mil perdões. Ainda que o sonho seja meu, e que o pensamento não tenha dono, a culpa é toda minha. Poderia ter velejado por outras praias, tombado em outros mares. Mas, ao sentir suas ondas brancas tocarem meus desprotegidos pés, todos os pecados somem, tal que nunca existiram.
Você se foi. Não quis impedi-lo. Sem motivos, em um segundo. Adeus, lembro de vê-lo acenando e indo embora naquela esquina sem fogo. Nesse dia, fui-me ao último andar de meu prédio. Pensei em pular, mas a coragem me faltou, uma lembrança foi o suficiente para deter-me.
Acalentei todas as flores em seu pequeno túmulo imaginário. Todos os dias, à noite, sem demora, jogava-lhe uma rosa. Ao dormir, escutava suas tentativas de ressuscitar, gemia alto, querendo tirar a terra da garganta. Porém, força de alma é maior do que força de migalhas. Você não conseguiu.
Os dias passaram lentos, as noites passaram em branco. O calendário era sempre igual. Uma tarde, quando passeava pelo meu jardim, senti ter ouvido sua voz, lá longe, dentro de minha mente. Sentei-me na grama, e olhei o sol. Ele me lembrava suas idéias. Você queria, como Hícaro, alcançá-lo. Morreria queimado, eu bem sabia. Isso era o que mais amava em seus olhos: a falta de medo.
Quando o tempo passou renovado, e eu finalmente achei que o tinha esquecido, sonhei com você. Vinha a mim, com todas suas palavras em falso, nas quais sempre acreditei, com toda a certeza da falácia. Desesperei-me, com razão. Lembrar de seu rosto era a morte, lembrar de suas palavras, o silêncio.
Mas hoje é diferente. Eu sinto as lágrimas descendo, uma por uma, sem importar-me com os sentidos. Agora, você vai acabar. Você vai sumir. Vai deixar-me. Sem explicação, sem volta. Eu vou matá-lo. Com seus olhos me acompanhando para sempre, não há mais para onde sonhar.

Pegou um punhal, que tinha guardado há vidas, e, com apenas um movimento, apunhalou seu próprio coração.