quinta-feira, junho 19, 2008

Circunscrição Paterna.

Queria saber por quê. Um motivo, uma circunstância circunscrita.
Por que estava em frente ao espelho, escondido, vestindo-se como uma mulher, a maquiagem forte, o batom vermelho, as poses sensuais? E por que, alguns segundos após, sentia-se repugnado de si mesmo, cuspia em seu reflexo e começava a chorar?
Não sabia o que pensar, pois não sabia de mais nada. Apenas sentia o peso doloroso da consciência em cima de seus cabelos, deixados longos por motivos óbvios de gostos musicais. É claro que nunca se havia penteado os cabelos sedosos por horas seguidas, apaixonando-se por si mesmo a cada passada de pente, é claro, claro que não, simplesmente.

- Você não me pode impedir. Já tenho dezessete, o cabelo é meu. Quero-o assim.

E inicialmente fora por paixão ao rock. Admito. Ele queria parecer revoltado, queria conquistar umas meninas fáceis, queria ser, como todos o querem, diferente. Conseguiu-o. Usava uma jeans rasgada, com símbolos nada religiosos, apenas blusas de bandas estrondosas, óculos escuros finos e redondos e tinha uma tatuagem de uma adaga em seu pulso.
Seu pai nunca aceitara tal situação. Gritava, xingava, batia as mãos na parede. Seu filho parecia não importar-se. Ah, mas se importava! Muitíssimo. Aquilo tudo era apenas carência afetiva, de fato. Mas como as pessoas são cegas…
A situação agravou-se quando o lápis de olho e o batom negro vieram à tona. Seu pai agonizou. Todos os dias, sem falta, desde manhã até a noite jogava indiretas bastante diretas. Mas ninguém vive somente de olhares enviesados.

Chegou o dia em que, colossalmente, o homem explodiu:

- Mas tu é um gay de merda.
Um gay de merda.
Um gay de merda.
Tu não é meu filho, diabo!

O garoto riu-se. Gay, ora se fosse! Riu-se ainda por todo o dia e mais além. Na verdade, passou um mês inteiro rindo. E as acusações continuavam. O pai era impiedoso. Os olhos em fúria, as lágrimas vertendo. Gritava pela casa que aquele não era seu filho, que odiava o dia em que ele viera ao mundo, que, se pudesse, matar-se-ia de remorso.
E aquilo, de certa forma, começou a importuná-lo. Começou a perceber que já tinha atenção suficiente. Sim, já a tinha. Agora, finalmente, poderia…

O poderia permaneceu no tempo verbal em que merece permanecer para sempre.

O homem deu um tiro na cabeça.

O garoto já tinha dezoito anos nessa época. Pode-se perceber a gradatividade da coisa. Não lançou uma única lágrima no velório. Jogou-lhe um lírio no enterro.
Quando encontrou-se sozinho, começou a remexer os dedos incontrolavelmente, os pensamentos voavam por sua cabeça. Então chorou. Quase um crocodiliano. Respirou fundo e foi até a penteadeira. Passou o batom fortemente por todo o rosto, pela testa, pelo nariz, pela boca. Emplastrou-se de perfume francês. Colocou o vestido de sua mãe mais curto e foi até o espelho.
Olhou fixamente para dentro dos seus olhos e disse:

- Por quê? Porque tu é um gay de merda.

Uma mentira, repetida muitas vezes, pode tornar-se verdade. Uma mentira, dita por alguém que nunca mais poderá desmenti-la, é, de fato, uma verdade absoluta.

terça-feira, junho 17, 2008

pensamento.

Sorvete seria ótimo agora. Mais uma crise gelada. Uma crise gelada de chocolate. Que delícia. E eu que prometi que não me iria importar! Aliás, eu que achava que não me importava. Que coisa, não? Em um momento as coisas significam absurdamente nada para você, mas basta piscar os malditos olhos que o apego já é imenso e você está com um grande problema. Um problema sentimental, ora. Quando você simplesmente sabe de toda a verdade, puríssima, inteira, total, e vem aquela pessoa infeliz, ah como é infeliz, e cospe-lhe completa na cara.
A verdade é que falamos demais. Concordo plenamente. Falamos o que não temos que falar, apenas porque temos a necessidade de fazê-lo. Incrível. E quando descobrimos que o que fizemos não foi boa coisa, começamos a jogar argumentos, de fato (quanto paradoxo!), falaciosos. Mas então, meus caros, a merda já está fedendo. Nós já magoamos a pessoa, já concluímos que a nossa opinião é a incógnita da questão. Somos os melhores bundões do mundo.

Mas para que a distância? Por que precisamos tirar as conclusões? Não podemos entender, ao menos um pouco, um mínimo pó, que não sabemos de tudo que se passa com o outro ponto que está na reta?

Mas o “outro”, e são milhares desse estirpe, também não é inocente. Ele nutre a mágoa. E ele distancia-se ainda mais de você. Porque, às vezes, a verdade falaciosa era verdade verdadeira (uau, agora faço uso do caríssimo pleonasmo).

Não tenho conclusões a respeito disso. Nunca tive e nunca almejei ter. Apenas queria que as pessoas fôssemos (silepse, you know?) um pouco menos orgulhosas e egoístas. Porque o nosso umbigo é algo realmente lindo, foi de lá que viemos etc, mas há outras coisas no mundo, tão mais belas…

Além disso (como adoro unir parágrafos e assuntos!), a hipocrisia latente tem-me incomodado muito. Cansei. Queria que, em apenas um segundo, todos tirássemos as máscaras e fôssemos para um baile à realidade. Seria tão mais… real? As pessoas dançando ao lado de suas ideologias ainda-não-tão-formadas, acreditando no que querem acreditar, admitindo sem o medo, sem o medo de nada, contornando, em passos rápidos, a mentira que apenas cega.
Isso seria uma utopia, certo? Certíssimo. Mas sonhar é o guia para fora da caverna de Platão. Ver o que está mais além das sombras é o primeiro salto para sermos nós mesmos. Para não mentirmos, para admitirmos o erro. E, poha, como é difícil admitir e fazer o que é moralmente e relativamente correto. Odeio relativismos, mas aceito o que o é. Porque a ética dentro de mim grita por justiça sem punição, sem dor, sem ódio. Uma justiça verdadeira, ideal, nunca mentirosa.

A ética dentro de mim grita amor! Porém é difícil doar-se com essa distância. Com essa ponte quebrada que foi criada entre mim e o resto do mundo.

Tenho um medo terrível: o medo de que eu esteja adaptando-me à crueldade. E, agora, escrevendo, entendo o que tanto me aflinge. É a realidade que criamos, não a realidade que deveria ser real.
Eu estou começando a enxergar o mundo, as pessoas, as coisas, os sentimentos, os fatos, como não enxergara antes.

E isso dói. Ah se dói.

Porque a utopia desfaz-se.
Desmantela-se.
Acostuma-se.

Até que desaparece eternamente.

Not yet, my friends. Not yet.

quarta-feira, junho 11, 2008

Digitais adormecidas.

Não deveria estar ali. Mas simplesmente estava. E agora era inevitável. Uma vez sentido o gosto da amargura, ele torna-se eterno em seus lábios. Não conseguia nem ao menos piscar, com medo de perder algum detalhe mínimo, algum movimento surpresa, mesmo que estivesse a uma distância absurdamente infinita. Os óculos de sol estavam escondendo seus olhares furtivos para o resto do mundo que passeava pelas ruas despreocupado.

O taxômetro marcava mais de cinqüenta reais. Porém não fazia diferença. Ela poderia ficar ali por séculos, mordendo os lábios, apertando o revólver que estava contido dentro de um pano negro de veludo. Como ela era clichê! E sabia disso. Uma mulher de meia idade, enciumada, planejando encontrar o marido em flagrante e matá-lo com a amante de vinte anos, loira e gostosa. Sentia tamanha repugnância disso, tal como seu orgulho pedia para ela sair dali imediatamente, voltar para casa e pedir o divórcio.

Mas a descrença não lhe permitia fazê-lo. Não, não! Por mais que as evidências fossem claras, claríssimas, ela precisava ver, cheirar, sentir o poder da traição e do desapontameto. Porque era isso que a movia até ali. Aquela incerteza tão certeira! Ah, como desejava ser mais jovem, mais bela e mais segura de si. Lembrava-se dos primeiros anos de casamento, quando tudo era eteno, eu te amo e morrerei ao seu lado. Ela realmente acreditou naquilo tudo. Por que não acreditar quando se tem o mundo aos seus pés, uma paixão indefinida e uma beleza invejável? Por que não, meu deus?

Agora era o reflexo da realidade descoberta. Não só neste momento, mas já há alguns anos. Obviamente, a quebra dos sonhos é gradativa, na maioria das vezes, como em seu caso. Mas há o tipo horrendo, que, com apenas uma pancada, quebra-se em migalhas. Talvez este último às vezes seja o mais justo, mas é certamente o mais doloroso.

O taxista nada falava, porém sentia a deteminação da mulher misteriosa. Pensava que, se não fosse ainda apaixonado por sua esposa falecida, talvez ficasse encantado com o jeito desta bela senhora. Não olhou, não ensinuou, não mexeu a cabeça: devia pôr-se em seu lugar de empregado, naquele momento. Parecia-lhe que sua passageira não estava muito para palpites ou confabulações para passar o tempo, tempo este que ele próprio não sabia para que estava sendo gasto. Suspirou.

Estava tão nervosa que tinha tiques de cinco em cinco minutos. Cruzava e descruzava as pernas. Grudava o nariz ao vidro. Sentia a vontade louca de gritar suas pétalas queimadas para que todos pudessem entender seu sofrimento antecipado. Mas nada poderiam fazer. Nem um pouco. Não foram eles que seguiram os maridos, logo de manhã, com a desconfiança fluindo por todo o corpo, não eram elesque estavam dentro de um táxi, esperondo algum sinal de…

E o sinal veio. Veio potente, como a luz. Ela apertou com mais força o pano de volume fortemente marcado por suas unhas. Os olhos, mais abertos do que nunca, estavam tão claros como a água mais limpa do oceano; E ela engoliu o sal, ah, se o engoliu. Com areia, conchas e o que mais viesse. A água inteira, todos os mares entraram por seus olhos e foram fundir-se com o coração. Ela encostou na porta do veículo. Ia sai de lá, rapidamente, enfiar duas balas naquele maldito e ser presa logo depois, porque não teria coragemde tirar a própia vida de merda.

- Senhora?

Ela estava parada lá há duas horas, a mão ainda na porta, as unhas ainda rasgando o veludo. Os olhos abriram-se de repente, como se fugitivos de um sonho. Respirou fundo. Não ia chorar. Não agora. Não, já passou. Acabou.

- De volta para o lugar em que me buscou, sim?

O taxista obedeceu. Puro instrumento fático. A casa aproximou-se, o sentimento nela foi surgindo. Agora assim era o desgaste da comprovação. A pílula da falta de coragem e suicídio interno.

Abriu a porta do lar. Ele estava sentado no sofá, fazendo seus cálculos. Olhou para ela e sorriu. Ela soriu de volta. Por onde esteve, meu amor? Ah, amor. Seu amor sou eu? Beijou-lhe na boca. Foi para o quarto, guardou o pano aveludado e passou a mão pela gaganta, como se fosse capturar o grito preso dentro de si.

Adormeceu uma e acordou outra. Agora, sim, tinha a certeza que corrói: [sobre]viveria em paz.