terça-feira, outubro 06, 2009

i[m]und?ação!

luísa abriu os olhos e deixou que as gotas de chuva entrassem em si, ardendo como chama. estava deitada no meio da tempestada sobre nuvens de concreto e pensamentos ladrilhados. a vida corria tão difícil como aqueles livros chatos e intermináveis (pedimos à nossa doce consciência que nos libere do ardoroso fárduo de terminar de lê-los, que possamos fechá-los e deixar que a poeira leve a história para o fundo do armário).
as imagens vinham à mente como assaltantes armados. chegavam, sacavam a pistola e... às vezes roubavam tudo que tinha; outras, atiravam até o sangue escorrer pelos poros em dúvida de morrer ou apenas trazer a dor. ah, era difícil. naquele momento, ela apenas queria abaixar o tom de voz até chegar a um sussurro auto-piedoso: me ajuda.
a semana inteira havia se tornado tempo de opressão para consigo mesma. adoecera, e lhe pareceu que tudo à sua volta também se tornara doentio. todos os dias, incontáveis, ia para o trabalho. luísa era professora de matemática. já fechava a porta de casa fazendo contas, contava os passos e os suspiros que fugiam impetuosos do seu peito: ah-ah-ah! 1,2,3 [x] infinito cortado (não há tempo para suspiros (nem números)). dava suas aulas, voltava para casa e ia assistir à televisão ou ler um livro. sempre gostou das palavras, apesar de ter trocado juras de amor com a exatidão. seguia a vida normal, suando e transpirando, catando um tempinho aqui e ali no final de semana para ir ao cinema. mas então a doença veio e avassalou sua vida.
teve que ficar de cama durante uma semana. e, nesse tempinho, luísa resolveu ver todos os noticiários que nunca havia visto antes (era só novela, ora essa). cada vez que uma notícia surgia, ela abria bem os olhos e prestava atenção, afinal, não é que todos dizem ser importante ser bem informado? também vou ser!
conforme as horas foram correndo, mais se fixava na cama, mais apertava os dedinhos embaixo da coberta. descobriu um canal pirata na sua televisão, um bandnews que às vezes surge mal sintonizado. prestava atenção em cada mínimo detalhe, em cada parêntesis ou vírgula que as imagens cotinham.
começou a ser o que via. quando as milhares milhares milhares milhares milhare milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhare milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhare milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhare milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhare milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhare milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhare milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhare milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares milhares de crianças passando fome na áfrica apareciam por meio de palavras ou com a cortante presença física, luísa sentia a dor crescer e fervilhar dentro de seu peito. o estômago roncava e pedia comida, por favor, só um pouquinho, dói tanto, quero um pedaço de pão. mas nem migalhas vinham.
quando a favela aparecia, escutava os tiros rompendo do seu lado e um medo terrível perpassava todo o seu corpo. medo medo medo medo medo de morrer e nem saber por que de onde para onde como. apenas a culpa no final, e os homens de cinza com olhares de lei nos olhos espancando com porretes de falsa moral a vida que corre sem sentido para os corpos jogados nos rios no fim de tarde.
de repente os trabalhadores sendo explorados, reprimidos, sem tempo para criação ou verbo-ser. a identificação foi real. e todos os momentos abusivos se tornaram raízes por seu corpo e deram frutos de raiva e indignação.
morte, corrupção, fome, violência, repressão
- alienação?

luísa estava deitada no meio da rua olhando para o céu. queria sentir aquele chão cheio de petróleo e lembrar-se que o suor do povo estava enterrado ali. seu suor também estava, cravado e escondido, bem ao lado do da sua vizinha, dos seus amigos de trabalho, do senhor carlos, dono da vendinha de legumes que almoça para não jantar.
sua vida não poderia continuar como era antes. não depois de toda absorção e luz que ganhou graças ao que a sociedade chama de doença. a doença que teve fê-la sofrer, mas arrancou toda miopia, astigmatismo e catarata que tinha nos olhos.

a semana seguinte seria ... forte.
suas mãos agora são sangue pulsante, força que lateja e não pára.
sabia que tudo estava errado, e uma reciclagem aqui e ali não bastaria.
é preciso jogar tudo no lixo!
e criar vida nova.

domingo, outubro 04, 2009

janela entreaberta.

abri os olhos e você me olhava. amêndoas arco-íris pedindo pr'eu cantar uma música de ninar. dorme, meu bem, que o tempo lá fora nos espera, dorme, meu amor, que a vida nos exige, e o caminho é longo, descansa agora enquanto eu mexo nos seus cabelos de poesia infinita.
len-ta-men-te, você se deixou embalar pelo meu canto sereno. por um momento, pude ver a fragilidade da sua respiração leve e cheia de vida. quis sentir como você sentia. o ar entrando, saindo, paz.
cobri seu corpo macio e delicado e sentei no parapeito da janela.
olá, estrelas.
milhares de pontinhos brilhantes acenavam para mim. são os vagalumes da eternidade. eu poderia ficar ali até os fins dos tempos, tecendo, sustenido por sustenido, a doce melodia que é viver.
você bocejou sonhos. eu costurava o dia. quando a manhã chegasse, certamente o raio de sol mais forte despontaria seu rosto para um sorriso girante, como o girassol.

mas um chamado vindo de fora da janela me assustou. moça dos cabelos de corda e dos dedos de harpa! não sei de onde veio ou por que me tirou a tranqüilidade: abri as asas e voei com o orvalho caindo dos olhos, deixando tulipas nascendo por onde passava... para o azul do mundo lá fora.
quando você acordou, apenas a música ficou presa no quarto, e aquele gosto de mel-primavera querendo voltar a ser doce.
no chão, uma estrela caída ainda cintilava.
-(era um vagalume ferido)-