terça-feira, abril 26, 2016

ela levantou, foi até o banheiro e depois pegou seu café. o rito de depois das duas da tarde já dizia que perdera mais horas do que deveria se permitir, e tudo estava normal. como qualquer acordar, como todos os dias - as paredes em seu lugar, as gatas sobrevivendo, o vento sendo capaz de tocar o instrumento musical que é o penduricalho na varanda.
exceto pela goteira. demorou pra esvaziar o copo de café, assim como todos os pensamentos em sua cabeça. e de repente o silêncio completo de estar só (ou quase). a goteira. a goteira. e percebeu que algo quebrava seu momento flutuante, o segundo que se descobre que respira seu pulmão já escuro dos cigarros. havia uma goteira.
o chão estava formando um poça e as gatas bebiam tranquilas o que parecia ser uma fonte de novidade. mas não, ela bem sabia: era uma ferida na casa. precisava tomar banho. imediatamente colocou um potinho pra acabar com a poça. terminou. e já transbordava. meu deus, quanto tempo demorou no banho? como uma simples e minúscula goteira teve a capacidade de transbordar um pote daquele tamanho?
colocou um balde, e foi ao mercado. precisava lembrar, lembrar de chamar alguém para consertar aquele incômodo. logo sua casa que nunca tivera problemas de infiltração, sua casa escura e sonolenta, sua pequena gaiola de palavras! nunca húmida, sempre morna, nunca fria, sempre morna. sua morada impenetrável... uma goteira!
abriu a porta de casa, carregando compras inúteis para completar o dia. e a água já estava em seus calcanhares. aquela goteira maldita havia transbordado o balde e sua casa agora estava inundada! começou a ligar para pessoas que pudessem resolver seu problema, mas ninguém podia fazer nada por ela naquele momento.
já não havia goteira, mas uma chuva dentro de casa. jurou que podia ouvir barulhos de trovões. começou a nadar na própria sala. deu um mergulho fundo e, ao abrir os olhos, não viu mais seus móveis silenciosos ou livros empoeirados. o copo de café na mesa havia desaparecido, pois tampouco havia mesa.
estava à deriva, no meio do mar. não havia mais nada à sua volta, senão água e um céu escuro e estrelado. ondas gigantes se aproximavam, mas não sentia medo. sabia que finalmente havia deixado o deserto para trás com suas miragens atrofiantes.
o som do despertador. é hora de acordar. é hora de acordar.
pulou da cama assustada. parecia tão real. meu deus, o que estou fazendo com minha vida?
e, de repente, escutou um barulho estranho e familiar vindo da sala. era o ruído de uma goteira.