sábado, junho 16, 2018

meu cansaço vai a profundezas
autocria barbatana 
aprende a língua dos peixes raros
de onde estou ou para onde vou
deitada num barco de papel acalentando estrelas
lanço a âncora nesse meio do nada
profundamente bonito, sabiamente triste
aguardo.
aguardo.
aguardo.
ele retorna e me seduz
eu que sempre fui de me afogar
me jogo nos braços da sereia.
chorar: este ato inumano
o corpo confunde corte com abismo
na sede eu confundo copo com navio
encho a grande queda-
te em silêncio
soluço não é solução
se for pra chorar
chora baixinho
como todo animal se esconde ao dar à luz
e morre fugido na sombra de um rio.
pensei em te ligar
lembrei que ninguém mais disca
nem discos escutamos mais
que pena
tanta música marcada 
tanto encontro retocado
será que compro uma vitrola?
ainda estou pensando em te ligar
não tem tomada aqui em casa
e sei bem que você não é abajur
que pena, comprei uma linda
palavra criei com ela
não é pra isso que serve a saudade?
faz sol lá fora. 
aqui dentro chove cântaros
sempre imaginei domingo chuvoso.
é possível ser feliz numa vida sempre à véspera?
o sol não respeita ninguém, 
nem meus pensamentos
nascidos da morte, estão
indo em direção a ela
como chocar-se com o absurdo
quer dizer que estive todo esse tempo adormecida?
alienada
não
tenho sofrido todos os domingos
estou sempre à espera desta chegada.
quando e somente quando estiver prestes a me jogar de braços abertos daquele prédio, após anos de planejamento e estudo sobre qual seria meu último pensamento, se sofreria ou teria um orgasmo ao me quebrar inteira no chão, largando as sílabas pelo ar, é somente aí que escuto teu ronco e consigo soprar barcos de papel no teu sonho que pinga ao meu lado ou talvez eu esteja confusa, a visão turva, são minhas lágrimas de sempre que alagam a cama.

quarta-feira, junho 06, 2018

sinto muitas vezes uma vontade profunda de escrever um texto cru, comê-lo com as mãos, o sangue na saliva, dilatando minhas papilas, o gosto seduzente da vida ao avesso, depois penso o quão estúpido isso é, não existe essa coisa de texto cru, ele está sempre bem bem passado, tão passado que consigo vê-lo a quilômetros quando olho para trás, sozinha na estrada enxergo as palavras formando uma linha do horizonte, penso em tirar uma selfie para que acreditem em mim e não me achem louca, mas pensar sobre isso já é um ato de insanidade, também gostaria de falar sobre papoulas e fazer uma poética, como dizem mesmo?, uma poética solar, tudo que eu queria na vida era uma alma jogada no sol, mas você conhece o mito, ele está aí para edificar minha história, um texto cru, eu teimo em achar que existe aquela tal de mudança de valor linguístico e mando todo mundo esquecer de uma vez por todas a etimologia das coisas, mas existe algum tipo de mágica na origem das palavras, elas têm cheiro, antepassados, há uma inscrição profunda dentro de sua escritura, por isso quando penso em cortar os pulsos é por um texto cru que estou faminta.
olá, meu amor, bom dia, sei que tem pensado muito sobre aquela casa na praia que há anos pensamos em comprar, pensamos, pensamos muito, sei tão bem quanto você o quanto pensamos na areia, nas ondas e até nos tatuís que hoje em dia já nem mais existem de tanta poluição, você sabia disso? não há mais tatuís por aí rodeando nossos pés e beslicando a ponta de nossos dedos. mas não foi culpa sua, eu sei que você esqueceu aquela guimba de cigarro e nunca faria isso de propósito, não quero que se sinta mal pela morte dos tatuís, mas você sabe, você deve lembrar, que quando falávamos da casa da praia, falávamos muito dos tatuís, e você até me disse que levaria seu papel e a aquarela para desenhar esses animais magníficos que ficam reaparecendo na minha cabeça, mas a verdade, a verdade mesmo, por favor não espalhe por aí depois de nossa conversa, é que nunca vi um tatuí, mas apesar disso sei muito bem como eles são e o quão importantes serão quando estivermos num asilo já com  a memória em frangalhos, tenho certeza que lembrarei deles e ficarei triste pelas gerações futuras que não terão a oportunidade de vê-los como agora os vejo, que sorte tenho, por outro lado, de nunca tê-los visto, não sei o que seria de mim se tivesse visualisado, mesmo que por um segundo, esse pequenino animal que tantas vezes percorreu meu corpo sem nem saber meu nome, sem saber das noites em claro, dos cortes de cabelo e da vida que gostaria de ter deixado para trás. meu amor, me desculpe, eu te acordei?
quando se está deprimido, maria pensava, que coisa mais louca que é lavar a louça. parece quase um mergulho no livro de dante, com os cacos cortando as mãos. a demora de dias passando pela frente da sujeira, o peso do corpo beirando a pia como vermes beiram o lixo: surgem de repente, como obra divina, e parasitam ali até que sejam expulsos por intervenção humana.
sempre esperou um milagre, não que rezasse, mas fazia sentido a espera. o que mais fazer senão esperar longamente para que a depressão fosse embora? as pessoas acham que depressão é qualquer coisa quando na verdade é um cheiro insuportável, como o da louça acumulada. ela convivia com esse cheiro até que esquecia dele, até que o normal fosse ele mesmo, esse cheiro de merda.
havia dias que descia as escadas do prédio e parecia entrar num labirinto, e olha que as escadas nem faziam círculo. estava já indiferente às baratas mortas e nem filosofava quando via a gosma que saía delas rente aos degraus. não havia o que fazer, e às vezes invejava suas mortes tão sem sentido e tão naturais e tão repentinas, assim como invejava a felicidade amena dos gatos que dormem tão tranquilos, e miam pedindo comida e quando sortudos são atendidos, e quando não, correm pelas ruas sem saber que estão na rua e que existem casas com outros gatos que não correm.
que coisa mais estranha essa de ter que lavar a louça quando o que se quer na verdade é quebrá-la. e não ter mais pratos onde comer, alimentar-se do resto das memórias que ainda invadem as frestas da porta e trazem seu aroma de incenso que sobrepõe o cheiro de comida estragada.
maria tem um grande desentendimento com seu corpo que pede para adormecer por longos dias enquanto é necessário fazer essas coisas da vida, que ninguém nunca tá muito satisfeito mas continua fazendo. comprou uma muleta numa loja perto do seu apê, pra arrastar o corpo pelos cantos, para chegar até a pia onde via essa louça maldita e onde já não sentia muito bem o cheiro da podridão.
este é o momento exato em que olha pra ela e se abisma e suspira e cansada senta no chão, cantarolando em lágrimas aquela música que costumava tocar na rádio na década de 90, onde era fácil lavar a louça e até enxugá-la. que coisa mais louca.