sexta-feira, fevereiro 15, 2008

Piscava os olhos, bem de leve, e tentava apertar o lençol. Na verdade, só conhecia o que apertava pois estava deitada, seu tato havia sumido por completo. Onde estava não sabia. Ou não lembrava. Talvez as duas opções unidas; poderia não saber, mas sentia que sabia de alguma forma e poderia ter esquecido o conhecimento.
A sensação era estranha demais. Quando piscava os olhos, poucas vezes, tão pesados como toneladas de chumbo, só via o branco, o branco completo, a alvidez contrastante, se é que isso era possível com nenhuma outra cor por perto. Mas era, pensava. Era branco contrastando com branco e um fio de vermelho escorrendo. Mas nunca as cores diferentes se misturavam.
E então, após um segundo de imobilidade e agonia, desesperadamente, uma parte de sua alma foi arrancada. Arrancada infinitas vezes, pedaço por pedaço, constante por constante. Ela gritava; um grito surdo, mas ainda assim um grito com a força do pensamento, com a força de toda a dor que emanava de si mesma, dor esta que ela não sabia que possuia. Pois a dor vem de dentro de nós para o mundo, arrebatando e destruindo todas as moléculas pelo caminho, para ocupar seu devido espaço. E mesclado com a dor, de alguma forma, vinha o arrependimento. Não sabia, não se lembrava... por quê. Por que a consciência sussurrava os pecados e a maldade de destruir-se a si mesma.

Acordou em meio à tempestade. Estava deitada no parapeito da janela, a risco de cair enquanto dormia. Algumas lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Novamente, dia após dia, o mesmo pesadelo. A sala branca, os olhares estranhos e sorrateiros, a dor e a culpa. Estava acorrentada e sabia disso. Não havia chave ou arma que a soltasse deste inferno. Aprisionada na própria mente e no passado, sorriu desgostosa.
As lembranças começaram a jorrar...

Era noite. Uma noite sombria, a noite que mais viria a odiar em sua vida. Ela estava amando um menino inteligente e calculista de 19 anos. Ele também a amava de volta. Estavam em sua casa, sozinhos... ela sentia que este seria o dia em que se entregaria por completo, colocaria sua alma nas mãos dele, e certamente confiaria cegamente. Ele não sabia como isto foi acontecer, mas estava amando uma menina de 13 anos, e sentia-se tão absurdamente bem perto dela... não, não queria machucá-la. Realmente, o amor fluía.
Escutaram um barulho na parte de baixo da casa, mas não ligaram. Somente quando ele notou os passos na escada é que percebeu o que fizera: a tranca, a maldita tranca. Esquecida. Rapidamente, empurrou a menina para dentro do armário, para logo depois dar de cara com um homem corpulento, portando uma arma... assustadora. Seu corpo tremeu, ao ver o sorriso de lado do gigante [gigante, pois ele se diminuiu inconscientemente para dentro de si, tal como uma fuga, tornando-se quase uma bactéria invisível]. O homem não pensou duas vezes, começou a espancá-lo, como se sentisse prazer naquilo.

- Onde está o dinheiro? - perguntou demasiadamente calmo, para os segundos anteriores.

O menino apenas balbuciou coisas sem sentido, e o homem voltou a chutá-lo. Ela não agüentou ver tudo aquilo, as lágrimas eram incontáveis, transformara-se em um rio. Escancarou a porta do armário e saiu gritando NÃONÃONÃO POR FAVOR NÃO O MACHUQUE. NÃO, PARE!
O gigante mordeu os lábios e aproximou-se da menina em apenas um passo, empurrou-a contra a parede e arrancou-lhe a blusa. Ela chorava, soluçava, perdia a respiração. Não podia fazer nada. E ele, seu amor, vomitava sangue e chorava por vê-la assim. O homem abriu seu zipper e ela gritou, desta vez de fora para dentro, sugou todo o ar, negou-se a abaixar as calças. Levou tapas, até ficar com o rosto roxo. E o homem, enfim, apagou seus sonhos.
O gigante, após usar seu corpo, deu um tiro nos dois braços e pernas do menino. Viu-o agonizar, e depois começou a revirar a casa inteira. Após dez minutos, pareceu ter encontrado o que queria e fugiu.
Ela desmaiou. Ele deixou de respirar. Quando acordou, estava na cama de um hospital. A agonia foi como o universo e mais além. A garganta entalou.
Porém, após três meses, aconteceu o desespero.

Estava grávida, recordou-se. Grávida da dor, grávida de um monstro, grávida do dia em que perdera o seu amor.
Voltou à sala branca. Voltou à perda de um pedaço de si mesma, que tentava excluir de sua vida: a criança que viria a nascer. Mas que foi morta, por sua própria escolha.

Sabia exatamente por que esse pesadelo sempre voltava: alguma parte de si sentia a falta do que nunca viveria. E, principalmente, ela sentia a falta da parte que se deixou morrer antes mesmo de vir a viver.

Acendeu o cigarro. O que está feito está feito, balbuciou. Mas sentia que isso não valia nada. Suas escolhas, após anos, ainda a afetavam. E isso era algo que devia aceitar. E, enquanto não se perdoasse, os pesadelos do passado continuariam a assombrá-la.

Desceu da janela e abriu a cortina. Hoje talvez seja um novo dia...

2 comentários:

Anônimo disse...

Tais textos me surpreendem tanto que fico sem ter o que dizer ;D
Seu talento é algo raríssimo! Estava sentindo tanta falta desses textos ._.
Espero que a inspiração tenha voltado!
Ah, e o Rei do Inverno tá aqui do meu lado :DDD
Beijos

marina disse...

esse foi um dos piores de se ler. Deus.
Eu não conseguiria pensar como ela.
O que está feito, está feito. Nunca consegui.
Mas vou só dizer: "[gigante, pois ele se diminuiu inconscientemente para dentro de si, tal como uma fuga, tornando-se quase uma bactéria invisível]." é minha parte preferida! simples mas descreveu demais a sensação...