terça-feira, janeiro 26, 2010

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aqueles gritos demoraram a sair da minha casa, dos cômodos, do pozinho entre as teclas do meu computador. entraram como uma orquestra, para todos os lados, pela fresta da minha janela e me alcançaram no chão onde eu estava deitada.
acordei sobressaltada, por saber que me tomavam os ombros e sacudiam. eu me deixava tocar como o piano em que meus pés encostavam. mas naquela noite, com o barulho me arranhando, eu queria ser muda. fui até a rua, era madrugada e meus olhos também pesavam como se houvesse uma gota de orvalho pendurada em cada cílio.
havia faltado luz no bairro inteiro - os gritos eram feito chamas. a janela de frente à minha casa estava aberta e uma mulher chorava.
cada grito, que como uma sinfonia crescia e diminuia, me consumia mais e mais. comecei a sentir o corpo quente. joguei água, mas não adiantou, tudo estava em carne viva. desde o chão em que eu pisava até os olhos assustados e com uma ponta de sentimento se escondendo nas dobraduras do piscar.

pessoas na rua já sussurravam.
- acho que morreu alguém.
- nossa, não somos ninguém diante disso tudo, não é mesmo?
- é.

entrei. teimosia de querer se distrair da vida. já disse que não quero distrações: quero sentir. como escrevo agora parece que foi um fato comum em um dia quente e sem sorte. realmente foi, não minto.
mas tudo me fogia do controle:
grito, fogo, dor, água. grito, dor, água, fogo. grito, fogo, fogo, dor. grito, grito, grito... fogo, grito.

um homem morreu, meu deus, e agora? como aquela mulher vai olhar para o mundo? como se as coisas já são duras e há de se limpar a casa toda sexta-feira? como se os chinelos ainda estão ao lado da cama! e o vidro ainda está embaçado com o frio do inverno passado.
fui para o banheiro e apoiei a cabeça na parede, a mão no peito. meu coração gargalhava.
era medo? era dor? era culpa? era falta?
o piano da sala parecia tocar sozinho, as pessoas na rua continuavam a olhar, os braços na cintura, a cabeça balançando, um conforto religioso afagando-lhes o pensamento.
quero um abraço, que me digam que sentem muito, que lamentam o repentino. talvez assim eu consiga me distrair um pouco do inevitável, porque os sentidos já me deixaram.

voltei a dormir. os dias seguintes devagar e estagnados.
o que mais me angustia é que a janela aberta por toda aquela noite continua fechada e os gritos, calados.
renderam-se, tal como eu (deiticamente), ao tempo.

5 comentários:

tarsila disse...

Porque texto é uma coisa.
Texto escrito por você é outra ;)

Te amo, Pri

Unknown disse...

Gostei bastante. Acho que a mulher devia processar a light... -n
beijos.

Click disse...

"já disse que não quero distrações: quero sentir."

Ê, coisa boa! E assim que se faz, que se deve fazer: aprender pelo sentido, pela entrega e, Deus nos ajude, pelo descontrole!

Click disse...

Isso! Lá da Letras!

M. disse...

seus textos são uma viajem colorida =)