quinta-feira, outubro 04, 2007

Mundo de Papel.

"Tinha mania de morder a tampa da caneta enquanto escrevia. Mordia também o lápis, o papel e principalmente as palavras. Isso, exatamente isso. Elaine costumava morder as palavras de tal forma, até que o universo ficasse de cabeça para baixo para estas a morderem de volta.
Irritava-se com o barulho que faziam ao seu redor, às vezes queria matar mesmo uma criança, pois seu choro a arranhava por dentro. Além de ser mordida por palavras, Elaine era arranhada pelo barulho. Isso era realmente um problema."

Pronto. Cessou a inspiração, ele estava há dias tentando escrever sobre... Elaine. Uma mulher egoísta, que achava-se superior às pessoas e que tinha manias consideravelmente peculiares. Mas não conseguia criar mais que isso. Não conseguia dar-lhe um rosto, uma expressão, cabelos ou roupas que usaria se realmente existisse.
Além disso, começou a achar que suas personagens eram verdadeiramente apenas feitas de palavras, somente isso, não lhe pareciam reais. E também não entendia por que diabos escrevia detalhes banais com os quais ninguém se importaria, apenas ele, é claro, e suas personagens de veludo, que de alguma forma agradeciam pela importância que este dava para suas vidas tão cotidianas e banais.
Ninguém entendia que ele precisava transportar os sentidos para o papel, mas que, ao mesmo tempo, não agüentava mais fazê-lo. Queria basear-se na vida, na realidade, mas não conseguia, as sardas, as ruguinhas, um fio de cabelo branco de Elaine o perseguia.
Exatamente! E seu coração acelerou: sardas... ruguinhas... um fio branco... trinta e dois anos?!

Desclareou-se. Mulheres de trinta e dois anos não costumam ser tão Elaine. Não costumam ter tantos detalhes, elas apenas são mulheres de trinta e dois anos. Não que pensasse que elas eram banais, não, não é nada disso, ele apenas pensava a verdade, como em sua maioria todos pensam.
Não sabia mais o que fazer. Tirou os sapatos. Ainda estava de sapatos porque ficou com preguiça de tirá-los quando voltou da padaria. Seus dedos eram horríveis, fez uma cara de nojo e apoiou-se na mesa. Dedos horríveis, dedos horríveis... talvez ela tivesse dedos horríveis! Oh, não, meu caro, mulheres de trinta e dois anos fazem as unhas.
Por que mulheres de trinta e dois anos fazem as unhas? Ele ficou com raiva de todas as manicures e pedicures: queria matá-las, vagabundas, vaidosas fedorentas. Ele não queria Elaine de unhas feitas, mas não queria dar-lhe unhas não-feitas. Enraivou-se.

Pro inferno! Declarou e decidiu continuar a escrever. Ele precisava dar-lhe mais vida, nem que fosse um dia, nem que fosse uma morte. Apenas algumas linhas, alguns suspiros, algumas raivas e algumas unhas!
Malditas unhas.

Ela caminhava pela rua tão lentamente que parecia quase cair, mas não se importava, tinha ódio das pessoas que andavam apressadas. Ó que não conseguia entender por que aquelas pessoas precisavam ser rápidas. Era o sustento de muitas delas e de suas famílias, mas Elaine não se importava, queria chegar em casa e escrever sobre o quanto é sofredora e o quanto a depressão a alastra pouco a pouco.
Vivia em um abismo, sem saber por quê. Bem, talvez porque era uma mulher de trinta e dois anos que vivia em um apartamento onde a luz não entrava e passava todo o dia lendo, absorvendo, esquecendo do mundo real. O mundo em que há pessoas sofrendo muito mais do que ela, sofrendo de fome, de miséria e de falta. Falta de tudo que possivelmente ela possui.

Ele agora odiava Elaine. Odiava com todas as forças. Quão mesquinha, irredutivelmente ingrata e egoísta ela era! E isso tudo vinha de dentro dele? Cuspiu em seus dedos: estava morrendo de repugnância de si mesmo. Foi até o espelho do banheiro e olhou fixamente para seus olhos. Podia vê-la ali dentro, presa em suas palavras, em suas folhas, apenas esperando para que ele lhe desse outras características odiosas e mesquinhas.
Voltou à sala e rasgou as folhas, abriu a janela e jogou os pedacinhos de Elaine no ar, não saiu do umbral até que todos os pedaços quedassem no chão, seis andares para baixo. Sentou-se no sofá, sentiu-se um pouco livre, calmo e solvido.

Acabara de matar uma personagem, sentia-se um assassino. Não obstante, a repugnância passara.


6 comentários:

Unknown disse...

belo, apenas =]

Anônimo disse...

cara!
a gente nunca pensa, nunca pensa nesses detalhes.
Os pensamentos e sentimentos dos personagens a gente se preocupa com eles, mas e a unha do pé? as vezes personagens perseguem, ou nos fazem perseguí-los...e temos que descobrir cada coisa! não quero, não quero.
outra coisa, lembrou tanto tanto a relação do narrador (que não é a clarice) do hora da estrela falando da macabéa. o dezprezo-ódio-amor-conhecer-misterioso. assim, demais. não o que tá escrito em si, mas a maneira como...deve ser igual como os dois se sentem.
eu ando rápido, porque to sempre com pressa. Pressa de fugir da tranquilidade.
adorei, pri. e vou ler o de baixo também! comento dele lá.
beijos menina-talento =)

Anônimo disse...

Cara ._.
Adorei, parece fragmento de um livro.
Pri, faz um livro.
Agora.

Raphael disse...

mto bom... e me lembrou mto do recycle XD

Anônimo disse...

Uma salva de palmas para a renomada escritora Priscila Blake, a melhor de todos os tempos. Sinceramente.
"Elaine" me lembra uma certa série literária... :)

Anônimo disse...

bonito =)
adorei especialmente esta parte: "Acabara de matar uma personagem, sentia-se um assassino."

muito, muito bom.