quarta-feira, janeiro 03, 2007

Balançar.

Uma flor em minha consciência desabrochou, quando escutei sua calma voz. Quase um sussurro, vida calma de recém descobertas. Uma criança, para mim. Para outros, apenas um objeto a pisar-se. Quem sabe uma meia suja, sem importância, que jogamos na lata de licho. Era disso que essa criança vivia. De opiniões ante-conceituadas.
Naquela tardezinha, em frente ao banco do parque, ela se balançava. Sua pele negrinha encostava no vento, enquanto suas madechas o acompanhavam. Sorria, sozinha, sempre sozinha, porque era negra. E negros, em 1758, só tinham a si mesmos e ao preconceito de todos, inclusive o deles próprios.
Eu me sentei naquele gramado verde e fique a observá-la. Ela balançava despreocupada, parecia que não tinha nenhum adulto por perto. Não era normal uma crinaça negra por essa parte da cidade, era perigoso para ela. Se alguém maldoso e racista o suficiente a visse, com certeza ela tomaria uma boa sova. Mas parecia que nada poderia mudar sua tranqüilidade.
Adormeci, por um tempo, encostada numa árvore, e fui acordada com um cantarolar gostoso, tão leve, que parecia um sonho.

Mãezinha do céu, eu não sei rezar.
Só sei dizer quero te amar...

Abri os olhos e espreguicei-me. Aquela voz macia vinha da menina negrinha, naquele balançar contínuo. Parecia que nunca cansava de balançar, era quase como se estivesse voando, para lá e para cá. Piscava os olhos quase raramente e, até aquele momento, parecia que não havia me notado. Virou o olhar, para mim, então, subitamente e não se mostrou surpresa ao ver-me ali. Eu, pelo contrário, achei a situação anormal, já que eu era uma mulher branca e desconhecida para a menininha.
Ela continuou com sua calma, em meio àquele ar deserto de vida. Algumas poucas pessoas que passavam olhavam feio para a doce garotinha no balanço e, depois, olhavam mais feio ainda para mim, por estar tão perto de uma negra sem ter nojo ou sem fazer nada para tirá-la de uma pracinha de crianças brancas.
Voltei a pensar comigo. Uma criança sozinha já era estranho de encontrar. O que uma menina negra estaria fazendo sozinha por aqui? Não sentia medo? Não era já tão nova assim, sabia, provavelmente, dos perigos que todos poderiam representar a ela.

Azul é seu manto,
Branco é seu véu...

Voz suave. Voz única. Que menina seria esta? Meu olhar não conseguia sair de perto desta criança! Tão segura de si, tão calma, tão corajosa. Será que estaria sozinha no mundo? Não, mesmo que estivesse, não me permitiriam adotá-la. Meu marido odiaria a situação! Mas... e se ela estiver sozinha?
Não, ela está arrumadinha, parece que veio da igreja, afinal, hoje é domingo. Sim, os pais devem tê-la deixado na escolinha e ela fugiu para cá! Eles devem estar preocupadíssimos.
Pensei em levantar-me, naquela mesma hora, para poder comunicar-me com a criança. Mas paralizei-me, quando ela voltou a cantar. Sua voz era quase... mágica.

Mãezinha, eu quero te ver lá no céu.
Mãezinha, eu quero te ver lá no céu...

Então ela finalizou a voz e a música. Parou também de balançar-se. Eu levantei e fui em sua direção, ela levantou o doce rostinho para mim e alargou um grande sorriso. Meus passos foram devagando, pensativos, até chegarem em frente à pequena figura de branco. Respirei e pousei a mão sobre seu cabelo, fiz um carinho.

- Menina, está sozinha? - perguntei, o mais gentil possível.

- Não, nunca estou sozinha!

- Como não!? Onde estão seus pais?

- Eu não tenho pais, não aqui!

- E onde os tem?

Ela deu uma risada gostosa, bem infatil, e levantou as sombrancelhas. Dobrou um pouco o rosto e pegou em uma das minhas mãos. Ergueu-a e fez com que um de meus dedos apontassem para o céu. Eu me surpreendi com aquele gesto, mas minha fé sempre foi muito escassa. Porém, não queria acabar com toda a esperança de uma criança nesse mundo.

- Ah, sim... você quer dizer que Deus é seu pai?

- Uhum.

- Mas para aonde foram seus pais daqui, sabe? A mamãe e o papai?

- Não há mamãe e papai, ora!

Então, ela correu. Correu realmente como quem tem força de vontade. E eu corri atrás, não podia deixá-la sozinha! Ela atravessou a rua sem nem mesmo olhar para o lado e se encaminhou para dentro de um prédio. Entrei logo após, e tudo estava vazio. Vi seus cabelos balançarem pela escadaria e, cansada, segui-a, degrau por degrau.
Subi muitas escadas, o suor já estava batendo no meu rosto. Chegamos até o final de tudo, só havia, agora, o que descer. Abri uma porta que dava para o andar mais alto e a vi, o vento sempre em sua direção. Meu coração acelerou! Ela estava em cima da borda, mais um passo e despencaria no ar.

- Menina! O que está fazendo?!!! Vamos, desça já daí!

Ela virou seu rosto sorridente para mim e deu uma longa piscada. Jogou-me um rosário azul, ao qual eu agarrei com toda minha vida.

E logo depois... caiu.
Ao menos foi o que pensei naquele instante.

Corri para onde a menina estava e, ao longe, eu a vi. Ela estava um pouco distante, mas seus cabelos não me enganaram.

Consigo, batiam duas longas e brancas asas, que refletiam em constrate à sua eterna beleza negra.



Apertei o rosário bem forte e voltei para a escadaria, escutando uma música suave entoar em minha mente...


4 comentários:

Anônimo disse...

Anjo arteiro não? ;] Muito bom mesmo, principalmente as partes que tem a música!

Anônimo disse...

gostei do final (y)
bonito e inesperado

Anônimo disse...

Putamerda, to toda arrepiada. Faz isso não...

Anônimo disse...

http://sublacustre.blogspot.com/

Ele escreve melhor que vocÊ :D