segunda-feira, novembro 01, 2010

minha vó está deitada na cama. sinto vontade de abraçá-la forte e de dizer vó, vai ficar tudo bem. mas ela não vai entender, vai dar uma risada ou um gemido baixinho e voltar para o seu mundo e para fora de mim. talvez seja melhor ela não ter entendido, pois não precisou engolir minha mentira. porque não vai ficar tudo bem. não, não vai. ela está sozinha e vai sofrer, o corpo mole e desolado, lábios solitários e sentidos surdos.
sinto vontade de chorar por nós duas. ela nem chorar mais consegue, não consegue mais ficar triste ou se lamentar, não entra em desespero. olha para o teto como quem vê a gávea dos pobres, a época de ser faxineira e não poder tomar conta dos próprios filhos. o abandono daquele nordestino safado, ser só na vida, a morte do seu quase marido camelô.
lembro de uma vez, vó, que você fez pizza pr'eu comer, lá no minhocão. e que eu achei tão ruim... cuspi na hora, e você ficou irritadíssima, me chamou de mal educada! lembro de tantas coisas, lembro de fazer penteados no seu cabelo, de jogar jogo da velha, de passear contigo. e você sempre foi tão parecida comigo... pequena, as mãos de criança, os olhos perdidos em qualquer lugar.
eu queria que você me entedesse para eu dizer que não foi culpa sua... que não adiantaria você ter chegado lá a tempo, ter parado de ver a novela para fazer o café mais cedo, ter tido vontade de subir para ir ao banheiro e passar pelo quarto. a morte, quando vem, não deixa culpados. não dessa forma. e talvez tenha sido melhor assim, não sei, juro que não sei.
também não foi culpa sua ter nascido pobre e ter sido abandonada. é culpa de... não quero falar sobre a culpa agora. mas ela está bem, na medida do possível, conseguiu sobreviver. e agora está cuidando de você como um filha. minha mãe é forte, de certa forma.
vó, eu queria te salvar. queria te mostrar fotos das coisas lindas, te contar histórias, te levar à praia num dia chato de domingo. colocar a minha mão na sua e ver uma lágrima de tristeza cair.
você já foi embora há muito tempo, deixou apenas o corpo pesado para trás. eu não gostava de ir ao hospital... tinha medo, ficava mal por dias, seus cabelo sem estar em você, um não saber nos olhos de uma vida longa. depois a cadeira de roda, a perda de sentidos, a surdez aprofundada, o vazio, o tomar banho em desespero, a merda no lençol.
por que eu não conseguia? um dia, minha mãe, irritada, me puxou até o banheiro e começou a gritar comigo para eu te dar banho. minhas pernas tremeram, chorei chorei, pedi pelo amor de deus para ela me deixar ir. vim para o quarto e me joguei na cama, um profundo mal estar me tomava, precisava respirar muito, oxigênio, tive a ânsia de vomitar tudo e de fugir dali.
isso machuca tanto. te ver deitada na cama, o chapeuzinho que você tanto gosta na cabeça, a camisola rosa, sua pele com cor de adeus. a cadeira de rodas na sala, a porta do banheiro fechada, meus dedos não agüentando mais o peso do que sinto.

sabe, vó, eu estou chorando agora. porque tudo é tão incontrolável, esse não poder fazer me arranca todos os fios de cabelo e me deixa nua.

me desculpe por querer mentir para você. mas é que eu também queria acreditar nessa mentira.

um abraço, talvez, mesmo que você não sinta, é tudo que posso dar agora.

2 comentários:

André Luís Borges de Oliveira disse...

Adquiri uma resistência a cheiros ruins e fortes. Minha avó ficava deitada no quarto, só deitada e já era um privilégio, pq era no seu quarto e não num leito de hospital. Mas ela fedia, o quarto fedia, o redor fedia. Merda. E para dar comida, carinho, o que seja, era preciso mergulhar num oceano de odor fétido. Aprendi a respirar pela boca. Hoje sou cantor e sinto culpa, às vezes. Sonho que ela está viva; acordo e ela morre novamente, lentamente.

Bruno Machado disse...

Os sentdos ficam tanto quanto confusos nesses momentos, porém menos estável ainda fica nossa razão. Esperamos a vida toda por esse momento e nunca estamos preparados para ele quando chega. Sei q já faz muito tempo q escreveu isso, e espero q muita coisa tenha passado por sua cabeça...
Não sei muito mais o q dizer a não ser viva a sua vida, pois é o q podemos fazer afinal.